
O marco dos 40 anos do fim da ditadura no Brasil, lembrado neste 15 de março de 2025, acontece quando o país se encontra novamente envolvido com discussões sobre o futuro da democracia e as investidas de militares para controlar o poder na República. Em março de 1985, com o término do governo do general João Figueiredo e a posse de José Sarney, primeiro civil a assumir a presidência do país desde abril de 1964, terminava o regime autoritário.
Após a assunção de Sarney, uma era de democracia liberal se consolidou com a Assembleia Nacional Constituinte e a promulgação de uma Carta considerada moderna, embora extensa, em 1988. Sobreveio a eleição de um presidente, Fernando Collor, pelo voto direto da população em 1989. Tomaram protagonismo forças que emergiram a partir do governo Figueiredo, com o fim do bipartidarismo e, depois, o processo da Constituinte. A ascensão do PT, a disparada do movimento sindical e o nascimento da elite intelectual do PSDB. Os dois partidos governaram o país na maior parte desse ciclo de vida democrática. Hoje, 40 anos depois, os expoentes que hegemonizaram o poder ao fim da ditadura militar estão desgastados e a democracia, esmaecida.
— Não está claro para onde iremos. A democracia deu sinais de resistência em horas difíceis, principalmente em 2023. As instituições deram respostas adequadas. Se vivemos desesperança, isso se deve às elites políticas, que não conseguem mais dar respostas aos problemas nacionais. Temos uma crise nas elites política, empresarial e intelectual — diz o historiador Marco Antonio Villa, citando pobreza de debate.
Para Céli Pinto, doutora em Ciência Política e professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a democracia atravessa momento de fragilidade no mundo, mas “não é tão fácil quebrá-la hoje como foi nas décadas de 60 e 70 na América Latina”.
— Temos liberdade de imprensa, Congresso e oposição funcionando, liberdade de ir e vir. O que existe, atualmente, é o crescimento de autocratas eleitos que minam a democracia por dentro. Não são mais ditadores tomando o poder em cima de um tanque — avalia Céli.

As instituições brasileiras falaram alto no 8 de janeiro pela democracia.
CÉLI PINTO
Doutora em Ciência Política e professora emérita da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Quatro décadas após o fim do regime, o Brasil novamente está diante da discussão sobre o papel e a ação dos militares: punir ou anistiar os denunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por tramas golpistas que pretendiam impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva em janeiro de 2023.
Professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Leonardo Avritzer afirma que o retorno ostensivo dos militares à vida política nacional, sobretudo a partir do impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, tem relação com a inimputabilidade da ditadura militar, que perdurou de 1964 a 1985.

— O primeiro momento na democracia brasileira em que militares poderão ser condenados vai acontecer neste ano (2025). É fundamental a punição para a estabilidade democrática — avalia Avritzer.
Não tivemos justiça de transição e punição dos excessos cometidos em torturas, prisões e desaparecimentos.
LEONARDO AVRITZER
Professor titular aposentado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais
Villa pondera que o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) será contra “um pequeno número de oficiais”, e não contra as Forças Armadas.
— Não foi estabelecido, no processo de redemocratização, o papel das Forças Armadas na prática da defesa nacional. Isso é problema do poder civil. Até hoje não sabemos o que queremos por falta de projeto. Precisamos de Forças Armadas enxutas, modernas, que gastem mais com equipamentos do que com pessoal — pondera Villa.
O fim do regime militar
Sob o general Ernesto Geisel, penúltimo presidente da ditadura militar, já havia anseio pela prometida abertura "lenta, gradual e segura" quando veio uma invertida: o pacote de abril de 1977 aplicou mais medidas autoritárias. O fechamento temporário do Congresso, o aumento do mandato presidencial de cinco para seis anos e a manutenção da eleição indireta para governador. Também foi criado o senador biônico, uma indicação do presidente da República. O objetivo era garantir a maioria para o governo no Legislativo e no processo político, contendo o avanço da oposição reunida no MDB.
— O pacote de abril de 77 gerou reação enorme, um espírito novo de mudanças radicais que precisavam acontecer, sob pena de as próximas gerações ficarem submetidas à ditadura militar. Foi um momento de inflexão. Aglutinou todas as forças que desejavam bases mínimas de democracia — recorda o ex-senador José Fogaça (MDB), que viria a ter papel relevante no encerramento da ditadura como coordenador da campanha das Diretas Já no Rio Grande do Sul e relator-adjunto da Constituição de 88.
A efervescência da oposição levaria o governo militar a ceder. Já sob Figueiredo, vieram a anistia “ampla, geral e irrestrita”, em 1979, o fim do bipartidarismo, o direito à organização política e as eleições diretas para governador em 1982. A oposição democrática venceu em 10 Estados, contra 12 do governista PDS, alcançando importantes êxitos em São Paulo, com Franco Montoro (PMDB), em Minas Gerais, com Tancredo Neves (PMDB), e no Rio de Janeiro, com Leonel Brizola (PDT).

A campanha das Diretas Já, movimento nacional pela escolha popular do presidente da República, foi um marco histórico entre 1983 e 1984. Fogaça relata que o povo decidiu sair às ruas aos milhares, deixando para trás o medo da repressão. No Rio Grande do Sul, houve atos em Cachoeira do Sul e Capão da Canoa. Em Porto Alegre, uma passeata que se encerrou na Esquina Democrática e um comício em frente ao Paço Municipal, reuniu cerca de 200 mil pessoas. A emenda pelas eleições diretas, apresentada pelo deputado federal Dante de Oliveira (PMDB-MT), obteve ampla maioria de votos na Câmara, mas não o suficiente para alcançar os dois terços necessários. Apesar do entusiasmo da campanha, ficou pelo caminho o sonho de ir às urnas em 1985, quando acabava o mandato do general Figueiredo.
— A campanha das Diretas foi fundamental para consolidar a ideia de retorno dos civis ao poder — destaca Avritzer.
A sucessão de Figueiredo, sem eleições diretas, ficou novamente para o colégio eleitoral. O PDS, sucessor da Arena, sofria com o desgaste dos anos de autoritarismo e contabilizava defecções. Caciques como Sarney, ex-PDS, migraram para o outro lado, seja o PMDB ou a Frente Liberal, uma dissidência do governo. Também havia um racha na coesão da ditadura militar, que, naquela disputa, foi representada por um civil: Paulo Maluf. Pela oposição, Tancredo Neves (PMDB) e Sarney de vice. Tancredo venceu por larga vantagem: 480 votos contra 180 de Maluf.

— O regime estava isolado e o desgaste era muito grande. A ditadura se legitimou em períodos com êxitos econômicos. Não era o caso do início dos anos 80. Houve a crise da dívida externa, a disparada da inflação e a queda do poder aquisitivo. O contexto fez o regime ficar encurralado política e economicamente — comenta Villa.
Diante do quadro irreversível, o governo militar “opta por uma saída organizada e negociada do poder”, destaca Avritzer. Para ele, a ditadura manteve um grau de “tutelagem” sobre o governo civil que se abria, “inclusive com ameaças a Sarney”. Os anos 80 foram marcados por atos terroristas de militares da linha radical que não aceitavam a transição. Nos bastidores, entre 1985 e 1989, ocorreram murmúrios sobre um possível novo golpe, o que foi registrado em documentos da CIA, agência de inteligência dos Estados Unidos.
— Se analisarmos o período da Constituinte, vamos perceber que os militares conseguiram colocar na Constituição tudo o que quiseram, incluindo o artigo 142 — afirma Avritzer, mencionando a condição das Forças Armadas de garantidoras da lei e da ordem, sob autoridade do Presidente da República.
Tancredo era conciliador. Não era um “incendiário”, destaca Villa. Aos olhos dos militares, isso o tornava “palatável” à sucessão. Contudo, o histórico político mineiro, que havia sido primeiro-ministro de João Goulart antes do golpe de 1964, precisou ser internado às pressas na véspera da posse. Surgiu a tese de que Sarney não poderia assumir se Tancredo, o presidente eleito, não estivesse empossado. Aconteceram horas de negociações nos bastidores envolvendo militares e, pelo lado da oposição, o peemedebista Ulysses Guimarães, o Doutor Diretas. Episódios como esse levam especialistas a reforçar a teoria de que a transição foi tutelada pelos militares.
Apesar da pressão e da recusa de Figueiredo em entregar a faixa presidencial, Sarney assumiu em 15 de março de 1985. Vieram as eleições de 1986, com a nomeação dos constituintes, a promulgação da Carta Magna e a eleição de 1989 pelo voto direto.

— Para a minha geração, toda a mocidade jovem e adulta, foi uma mudança muito grande e importante. Eu só pude votar para presidente da República com 42 anos. Já tinha dois filhos grandes em casa. Foi uma mudança construída ao longo do tempo — rememora Fogaça.
Para Avritzer, março de 1985 é o “marco inaugural” do fim da ditadura.
— A democratização é um conjunto. O elemento central é a Constituição de 88, que amplia direitos políticos e sociais — afirma o cientista político.
Na era civil-democrática, são apontadas como algumas das principais conquistas do Brasil o Plano Real, a estabilização da economia, a redução da pobreza e das desigualdades, a independência das instituições e a consolidação de direitos da cidadania.
Questionamentos ao marco
Uma linha mais recente da historiografia questiona o 15 de março de 1985 como o fim da ditadura militar e o início da era democrática. Os argumentos vão desde a posse de Sarney, um egresso do PDS, até o fato de ele ter governado parte do mandato sob o império da Constituição de 1967, instituída em articulação civil-militar. A tutela que as Forças Armadas teriam exercido na transição democrática reforça a análise.
— Que começou um governo civil é inconteste, mas que iniciou uma democracia é onde reside a primeira crítica. Sarney jogava com as regras da ditadura. Não havia novidade. A posse de Sarney é negociada por Ulysses com Leônidas (Pires Gonçalves), que era ministro do Exército. A transição não é uma data, mas é um processo que acontece aos poucos — avalia Caroline Silveira Bauer, professora do Departamento de História da UFRGS.
Ela reitera que os militares tiveram força para incluir dispositivos do seu interesse na Constituição de 88: além do artigo 142, menciona o “lobby” para a manutenção da segurança pública militarizada. Recorda a sobrevida do Serviço Nacional de Informações (SNI) até 1990 e dos ministérios das Forças Armadas — do Exército, da Marinha e da Aeronáutica —, que, somente em 1999, no segundo governo de Fernando Henrique, foram sucedidos e agregados no Ministério da Defesa.
— Se consultarmos os arquivos do SNI, observamos que houve vigilância sobre a Constituinte, a reorganização dos movimentos sociais e os candidatos à Presidência de 1989 — destaca Caroline.
Ela vai além ao contestar a visão de que a ditadura militar foi derrotada no Brasil.
— Teve crises e elementos importantes de descrédito na opinião pública, mas a memória social da ditadura é positiva, independentemente da economia e dos crimes — enfatiza Caroline.
O cientista político Leonardo Avritzer recorda a teoria do “entulho autoritário”. A ditadura findou, mas permaneceram instituições e monitoramento do poder civil.
— A tutelagem, talvez, esteja chegando ao final agora, com os processos do 8 de janeiro. Os militares entregaram o poder e saíram nos seus termos. A maneira como a Lei da Anistia não permitiu exceções para analisar casos de mortos e desaparecidos. Tudo isso é o entulho autoritário, que segue até hoje — destaca o professor.
As análises de ambos, no debate público, encontram resistência. Para o historiador Marco Antonio Villa, os problemas atuais da democracia não têm relação com a transição de 1985, mas com o impeachment de Dilma Rousseff, quando a sociedade teria entrado em um processo de “irritação” após episódios de corrupção e crise econômica.
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Fernando Collor assumiu em 1990 e extinguiu o SNI. Depois, ele sofreu impeachment em 1992. Houve pressão dos militares em 92? Não teve — diz Villa.
MARCO ANTONIO VILLA
HISTORIADOR
Ele destaca que Sarney já assumiu o governo “fragilizado”, com inflação de três dígitos em 1985, e diante de “muitas expectativas e cobranças”.
— A transição foi bem feita. Podemos dizer que o general Leônidas tinha ascendência grande, mas nada comparado à tutela dos militares no Chile — pondera o historiador.
O ex-senador Fogaça discorda do conceito de que a ditadura estendeu seus tentáculos para além de março de 1985.
— Ali se encerra o governo militar. Não havia mais repressão ou limitação política. As instituições que perduraram não tinham mais efeito prático. O mundo não é um estalar de dedos. Houve muito trabalho para a construção do novo edifício legal no país. Só a Constituinte foi um trabalho ininterrupto de dois anos — rebate Fogaça.
Sobre a discussão da Lei da Anistia, uma das mais acaloradas por proteger crimes de Estado, a professora Céli Pinto concorda que deveria ter ocorrido revisão nos governos civis. Contudo, ela considera “fácil” a crítica com o olhar dos dias atuais.
— Em 1979, tinha muita gente desaparecida, demitida do trabalho por causa de política, exilada. E tínhamos um governo militar aqui dentro. Quem era adulto lá atrás sabe a luta que foi para ter o mínimo de normalidade e tirar os militares do poder — reflete Céli.