A comissão de representação externa da Assembleia Legislativa criada para avaliar o sistema estadual de combate à escravidão moderna, motivada pelo resgate de trabalhadores em condições degradantes no interior do RS, apresentou relatório final com 74 propostas e recomendações de enfrentamento ao problema e prevenção.
As sugestões listadas pela Assembleia são dirigidas aos poderes Executivo nas esferas federal, estadual e municipal, ao Legislativo, Judiciário, empresas e entidades da sociedade civil. As conclusões são assinadas pelo deputado estadual Matheus Gomes (PSOL), relator e coordenador da comissão, cuja atuação ocorreu entre 16 de março e 14 de abril.
Para o governo federal, é recomendado o mapeamento dos períodos de safra e necessidade de força de trabalho para atuação nas colheitas, com garantia dos direitos trabalhistas e sociais, realização de concurso público para os cargos de auditor fiscal do trabalho, buscando corrigir a defasagem, e a apresentação ao Congresso de projeto de lei que crie o Plano de Ação em Conduta Empresarial Responsável.
Ainda à União, é recomendado que estude meios de flexibilizar o Bolsa Família para permitir que trabalhadores sazonais, como os safristas, possam ter a carteira profissional assinada com a garantia de manutenção do benefício social.
A maior quantidade de recomendações foi dirigida ao governo do Rio Grande do Sul, com 22 itens. Dentre as sugestões, estão a revisão e atualização do Plano Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo, de 2013, e a instituição de um fundo de combate às práticas de labor degradante, o qual poderia receber recursos de organismos internacionais e de termos de ajustamento de conduta (TACs) para financiar ações de prevenção e repressão. Também são propostas a inclusão de metas e ações a serem executadas sobre o tema na Lei de Diretrizes Orçamentárias.
Outra medida destacada é a vedação de liberação de créditos pelas instituições financeiras estaduais, como Banrisul e Badesul, para empresas envolvidas na redução de empregados à condição análoga à escravidão. Para os casos comprovados de infração, foi indicado o bloqueio a incentivos fiscais. É citado como conveniente incluir disciplina sobre trabalho escravo e suas formas análogas nos cursos de capacitação de servidores públicos, sobretudo para os agentes de segurança e socioeducativos.
No capítulo das possíveis falhas no sistema de erradicação da escravidão moderna, a comissão indicou a ausência de concurso público, desde 2013, para o cargo de auditor fiscal, vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). Esses profissionais são responsáveis por fiscalizações em ambientes laborais, incluindo as propriedades rurais que contratam mão de obra sazonal, tarefa que igualmente cabe ao Ministério Público do Trabalho (MPT).
Da análise do 1º Plano Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo, de 2013, o relatório concluiu que o governo do RS descumpriu 25 das 38 ações que eram de sua responsabilidade. Dentre as tarefas inobservadas, foram mencionadas iniciativas de enfrentamento, repressão, reinserção, prevenção, informação, capacitação e penalização econômica.
O documento assinalou que a Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-RS) funciona de forma “desarticulada e precária”. A Assembleia identificou que não há registro de regularidade de reuniões do órgão nem sequer previsão orçamentária para seu financiamento em 2023.
Sobre o Coetrae-RS, que tem função de discutir políticas públicas e articular ações entre os órgãos que atuam na fiscalização, prevenção e resgate de trabalhadores, é sugerido ao Palácio Piratini que o órgão seja reestruturado, tenha orçamento, equipe própria, exclusiva e permanente.
— O relatório desafia o governo Eduardo Leite a agir para além da crise e retomar uma perspectiva de luta pela erradicação do trabalho análogo à escravidão. Isso é o que previa o plano criado há dez anos e que foi negligenciado pelos últimos governos — afirma Gomes.
Além dele, fizeram parte da comissão externa os deputados estaduais Bruna Rodrigues (PCdoB), Guilherme Pasin (PP), Carlos Búrigo (MDB) e Delegado Zucco (Republicanos). As 74 propostas foram aprovadas de forma consensual, diz Gomes.
O parlamentar tenta audiência com Leite para entregar cópia do relatório. Ele viajará a Brasília para entregar exemplares aos ministros do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, e dos Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida.
Governo diz que Coetrae-RS tem “participação massiva” e destaca criação de fundo
A diretora do Departamento de Justiça e Políticas sobre Drogas da Secretaria de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos (SJCDH), Viviane Nery Viegas, afirma que o Coetrae-RS está funcionando com “participação massiva” de entidades como MPT, Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT4) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), além do governo estadual. Ela diz que as reuniões ordinárias mensais “sempre têm quórum” e destaca iniciativas que estão em andamento.
— Desde o ano passado, é tratada a necessidade de criação de um fundo estadual de erradicação do trabalho análogo à escravidão. Nas próximas semanas, vamos finalizar a minuta do projeto de lei e buscar a aprovação do Coetrae-RS, que já começou a fazer a análise — comenta Viviane.
Ela diz que a proposta de criar o fundo deverá ser enviada pela SJCDH para a Casa Civil do Palácio Piratini em maio. Depois disso, a proposição será protocolada na Assembleia Legislativa, que terá de aprovar a medida.
Viviane declara que, no momento, uma das discussões vigentes é sobre quais recursos irão irrigar o fundo. Ainda não é possível estimar valores que ficarão disponíveis para iniciativas, diz a diretora. Ela ainda destaca a elaboração de uma proposta de decreto estadual em que deverão ser listadas todas as políticas e responsabilidades do Estado quanto à erradicação do trabalho análogo à escravidão.
Confira, abaixo, a íntegra da nota emitida pela SJCDH após as conclusões da comissão de representação externa da Assembleia
"A Comissão Estadual para Erradicação do Trabalho Escravo (Coetrae-RS) tem tido um papel fundamental na articulação com os outros órgãos para o enfrentamento do trabalho análogo à escravidão. Inclusive, a partir do diagnóstico da necessidade de melhoria na dinâmica das ações do Governo do Estado na atuação pós resgate, o governo criou um grupo de trabalho intersetorial cujos produtos finais estão focados em duas grandes ações já em andamento há alguns meses:
1. Diagnóstico da atuação do governo do Estado nas ações descritas no Plano Estadual Para Erradicação do Trabalho Análogo à Escravidão. Conforme destaca a diretora do Departamento de Justiça e Políticas sobre Drogas, Viviane Nery Viegas: “veja que já há uma articulação no sentido da inclusão e sistematização de ações com a Secretaria de Saúde, por exemplo, que não constava no rol de atores que participavam do Plano Estadual, construído em 2013 e que necessita de atualização, inclusive, com alinhamento com a nova proposição de Plano Nacional iniciada em março pelo Governo Federal”.
2. A elaboração de uma proposta de decreto estadual que contenha todas as ações e responsabilidades do governo estadual na articulação da política pública de combate ao trabalho análogo à escravidão. “Esta proposição visa melhorar a dinâmica do trabalho de pós-resgate bem como torná-la mais célere e eficaz. Ademais, há uma preocupação do grupo de trabalho na elaboração de um sistema de monitoramento de dados estatístico sobre a atuação do governo do Estado nestas ações”, ressalta a diretora.
Importante registrar, ainda, que os movimentos de articulação das ações do pós-resgate com os municípios já acontecem através da Coetrae, especialmente coordenadas pelo Departamento de Justiça bem como pela presidência da comissão, que já atuou presencialmente in loco em diversos casos.
Embora a comissão exista há quase 10 anos, há pelo menos dois anos o governo do Estado tem uma relevante participação e um compromisso de reestruturar o sistema e focar nas capacitações, inclusive, com servidores públicos municipais. As ações de todas as instituições são noticiadas e pensadas em conjunto dentro da Coetrae, havendo compartilhamento de docentes, formadores, palestrantes de instituições como MPT, MTE, SSP, PRF, PF, entre outras. As reuniões ordinárias têm uma regularidade mensal e havendo necessidade, como aconteceu nos últimos meses, foram realizadas reuniões extraordinárias.
Outro ponto importante é a criação do fundo, que já era iniciativa do governo em 2022, ou seja, já vem sendo construída. Na última reunião da Coetrae, inclusive, foi discutida a minuta de criação do fundo que servirá de base para que o governo do Estado encaminhe um projeto de lei à Assembleia Legislativa. Tudo muito adiantado, com a participação de todas as entidades que estão dentro da Coetrae.
Reforçamos, ainda, o alinhamento nacional bastante próximo com as entidades responsáveis pela fiscalização. Importante registrar que a aproximação da Coetrae com as empresas também é um movimento que está sendo planejado e organizado com o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). O objetivo é visitar as confederações para fortalecer esse movimento."