No auge da Lava-Jato, acordos de leniência eram tratados nas empreiteiras alvo da operação como o único caminho para a sobrevivência. Agora, a expressão usada nas empresas para se referir aos contratos é outra: "bomba-relógio". Sob argumento de que estão em sérias dificuldades financeiras, empreiteiras que concordaram em pagar bilhões ao erário pelos desvios confessados tentam repactuar os débitos — seja em relação ao valor ou às condições de pagamento.
Segundo o Estadão apurou, Novonor (antiga Odebrecht), Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa e UTC estão nesse grupo. Segundo delatores da Lava-Jato, ao lado da OAS, esse grupo de empreiteiras formava uma espécie de "clube VIP", que se associava para fraudar licitações e superfaturar contratos.
As cinco concordaram em celebrar acordos de leniência bilionários com as autoridades públicas. Os acordos de natureza administrativa são uma espécie de delação premiada das pessoas jurídicas.
— O que posso assegurar, como um observador privilegiado, seja pela condição de advogado ou docente, é que existe mais do que interesse, existe uma necessidade vital das empresas. Se não houver essa redefinição de valores estaremos assegurando o fim do instituto do acordo de leniência — afirma o advogado Sebastião Tojal, que foi responsável pelo acordo da Andrade Gutierrez e da UTC. Ele não quis comentar casos concretos.
As cinco leniências firmadas com a União somam R$ 8 bilhões, dos quais cerca de R$ 1 bilhão foi pago até hoje, segundo informações disponíveis no site da Controladoria-Geral da União (CGU).
Durante as apurações, os investigadores apostaram no estabelecimento de um valor alto, mas com pagamento prolongado. Em julho de 2018, a Odebrecht concordou em pagar R$ 2,72 bilhões pelos desvios confessados pela empresa e seus executivos. O montante foi parcelado em 22 prestações anuais. O modelo se repete com as demais empreiteiras, podendo chegar a 28 anos, no caso da OAS.
Argumentos
As empresas listam argumentos para defender a revisão dos acordos. Entre eles, a dificuldade em voltar a contratar com o poder público, somada à crise econômica agravada pela pandemia, que faz com que elas não tenham o fluxo de caixa imaginado quando fecharam os acordos. Ponderam ainda que o fim das grandes obras públicas e a recessão econômica no país derrubaram o investimento público e privado em infraestrutura desde 2014, quando chegou a R$ 188,5 bilhões. Em 2020, o valor foi de R$ 124,8 bilhões, de acordo com a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). A história das empreiteiras nos últimos oito anos acumula casos de venda de ativos, recuperação judicial, demissões e dívidas bilionárias — incluindo as derivadas das multas e indenizações estabelecidas na Lava-Jato.
Na visão das empresas, os acordos não resultaram na tranquilidade operacional esperada. Uma das principais queixas é em relação ao descompasso de ações de órgãos como o Tribunal de Contas da União (TCU), CGU e Ministério Público Federal (MPF). Medidas desencontradas, segundo as empreiteiras, causaram mais insegurança e dificuldade de contratação com o poder público. Para o advogado de umas das construtoras, a empresa não pode assumir "uma obrigação que seja um suicídio".
— Esses acordos buscam, de um lado, indenização. De outro, compromissos de integridade e, finalmente, informações a partir das quais a autoridade possa promover investigação — observa Tojal. — A indenização acabou por prevalecer sobre os demais objetivos. Salvar a instituição "acordo de leniência" significa redefinir valores que possam ser pagos sob pena de a empresa não conseguir indenizar e deixar de cumprir as outras funções.
O advogado defende que haja uma definição política sobre a questão. A demora da via judicial, segundo ele, será fatal para as empresas.
Conforme advogados, o debate sobre a repactuação dos acordos ganhou força nos escritórios que negociam em nome das empresas conforme as condições econômicas de cada uma delas se deterioram e o risco da inadimplência aumenta. A Lei Anticorrupção, que fundamenta os acordos de leniência, entrou em vigor no início de 2014. Desbaratada no mesmo ano, a Operação Lava-Jato foi o primeiro e maior teste para o instrumento desde então.
A série de derrotas sofridas pela Lava-Jato no ano passado contribui para a insatisfação das empresas com a multa acordada.
— Muitos desses acordos consideraram fatos ilícitos à época de sua celebração, que foram considerados lícitos ou de menor gravidade posteriormente em processos penais. A empresa assumiu pagar uma reparação por algo que depois não foi considerado um dano ou foi considerado um dano menor — disse o advogado Walfrido Warde, presidente do Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IRREE).
Prazos
Algumas empresas buscam mudar a forma de pagamento e esticar prazos. Outras tentam diminuir o valor acordado, um caminho considerado mais difícil, conforme a maior parte dos advogados ouvidos pelo Estadão. Segundo pessoas que acompanham o caso da Odebrecht, o pedido da empresa é para conseguir um alívio nas prestações devidas até 2025. A partir daí, assumiria valores mais altos para honrar o montante total acordado. O ano de 2025 é também o compreendido no plano de recuperação judicial do grupo, que tinha quase R$ 100 bilhões em dívidas.
As manifestações de empresas com pedido para alterar as condições da leniência correm em sigilo. Advogados tentam negociar diretamente na CGU, que passou a centralizar a atuação sobre leniência. Tojal, único dos advogados de empreiteiras consultados que aceitou falar publicamente sobre o tema, nega que a diminuição de valores signifique que o Estado não será ressarcido por danos causados por corrupção.
Delatores querem anular tratos firmados na Justiça
Em meio à série de derrotas impostas pelo Supremo Tribunal Federal à Operação Lava-Jato, como a soltura de réus, delatores também tentam anular acordos.
Como mostrou o Estadão em abril, colaboradores questionam os tratos firmados na Justiça. Em caso de êxito, há brecha para devolução de multas já pagas, segundo especialistas em direito penal. Para os delatores, a sensação é de eles são os únicos punidos, enquanto réus delatados ficam livres de sanções.
Na lista de insatisfeitos estão executivos da Odebrecht, o ex-presidente da OAS Léo Pinheiro, o ex-presidente da UTC Ricardo Pessoa e o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.