Dois dias após a liberação do vídeo da reunião ministerial de 22 de abril, o presidente Jair Bolsonaro publicou nas redes sociais trecho da lei de abuso de autoridade que penaliza a divulgação indevida de gravações. O chefe de Estado fez referência a um dos artigos do regramento, mas, para juristas ouvidos por GaúchaZH, o texto não se aplica ao caso e a decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendeu ao princípio da transparência.
Na manifestação postada neste domingo (24), Bolsonaro não citou Mello, apenas compartilhou o conteúdo do artigo 28 da lei, que diz o seguinte: "Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado: Pena - detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa."
As cenas no cerne da controvérsia são apontadas pelo ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro como a suposta comprovação de que Bolsonaro teria tentado interferir na Polícia Federal para proteger familiares e aliados. Na última sexta-feira (22), Mello, que é responsável pelo inquérito sobre o tema, autorizou a publicização do encontro, recheado de palavrões, ameaças de prisão, indícios de ruptura institucional e ataques a prefeitos, governadores e magistrados. O decano preservou apenas "poucas passagens do vídeo e da respectiva degravação nas quais há referência a determinados Estados estrangeiros", que poderiam causar problemas ao país.
Na avaliação de quatro especialistas consultados pela reportagem, a insinuação de Bolsonaro não se sustenta. Para o professor de Direito Penal da PUCRS Alexandre Wunderlich, a determinação de Mello foi "absolutamente regular".
— É uma decisão de levantamento de sigilo dos autos de uma investigação. Não há crime nenhum, nem mesmo em tese. A manifestação do presidente da República é retórica, é jogar para a plateia, é colocar o leigo, o senso comum, o imaginário social, contra a decisão e até mesmo contra o STF. Chega até a ser um deboche o presidente que defende a prática da tortura dizer que uma decisão judicial de levantamento de sigilo representa abuso de autoridade ou tentar fazer insinuações a esse ponto — critica Wunderlich.
Na avaliação de Eduardo Carrion, professor titular de Direito Constitucional da UFRGS e da Fundação Escola Superior do Ministério Público, a postagem de Bolsonaro "tem fundo político". Carrion lembra que Mello é o ministro mais experiente do STF e é conhecido pela ponderação e por agir à luz da Constituição.
— A liberação pública do conteúdo do vídeo, além de atender ao princípio republicano da transparência, respeitou princípios processuais. O que pudesse haver de estritamente pessoal ou que eventualmente prejudicasse no plano das relações internacionais foi suficientemente avaliado pelo ministro decano. A manifestação do presidente parece ter o objetivo de fomentar mais confusão, quando o foco deveria estar no enfrentamento da pandemia. Talvez seja uma manobra diversionista pela incompetência diante da crise sanitária — afirma Carrion.
Não houve, na opinião de Ivar Hartmann, doutor em Direito Público e professor da FGV-Direito Rio, nenhum tipo de intromissão na vida privada do presidente. Como Carrion, ele destaca que não havia razões para impedir a abertura do arquivo.
— Não há absolutamente nenhuma expectativa de privacidade quando estamos falando de reunião de trabalho, profissional, envolvendo funcionários públicos. E mais: não eram dois, eram dezenas e estavam cientes de que estavam sendo filmados. Há uma investigação criminal em curso e não resta a menor dúvida de que o vídeo tinha de ser divulgado. Quando se trata de pessoas do mais alto escalão do poder Executivo federal, a transparência para a opinião pública é absolutamente essencial. Tudo o que a gente não quer é que uma investigação envolvendo o presidente que seja feita às escuras — reforça o professor.
Colega de Hartmann na FGV-Direito Rio, Thiago Bottino vai mais longe. Além de não detectar qualquer indício de exposição de intimidade, o pós-doutor pela Columbia Law School ressalta que a divulgação integral da gravação (com exceção às referências a Estados estrangeiros) impede a descontextualização das falas, o que merece destaque. Por fim, Bottino lembra que tanto Bolsonaro quanto Moro foram favoráveis à publicação completa do material.
—Logo, se se manifestam favoravelmente à publicidade, não podem posteriormente afirmar que sua intimidade foi atingida — conclui o professor.