A sucessão na Procuradoria-Geral da República (PGR) alimenta uma rede de intrigas e ressentimentos que pode, pela primeira vez na história, levar à judicialização ou até mesmo a boicote da categoria ao futuro chefe da instituição. A confusão é motivada pelo descontentamento dos procuradores com a atual procuradora-geral, Raquel Dodge, e a possibilidade de o presidente Jair Bolsonaro indicar alguém de fora do Ministério Público Federal (MPF) para o novo mandato.
A eleição está marcada para 18 de junho e há pelo menos seis pré-candidatos ao cargo além de Dodge (veja abaixo), que deve concorrer à reeleição. A lista tríplice com os mais votados será encaminhada à Presidência, a quem cabe formalizar a indicação do futuro mandatário para sabatina no Senado. A troca no comando do órgão ocorre em setembro.
Dodge nunca foi unanimidade no MPF. Em 2017, ela perdeu a eleição para Nicolao Dino, mas foi nomeada mesmo assim após o presidente Michel Temer romper com a tradição de indicar o mais votado. Não tardou para as desavenças começarem. Tida com centralizadora, Dodge se isolou no comando da PGR. Assessores diretos não conseguem espaço na agenda da chefe e grupos de trabalho reclamam que ela assume autoria exclusiva de estudos coletivos. No combate à corrupção, as queixas são mais graves. Dodge desfez os vínculos entre a cúpula do MPF e as forças-tarefas da Lava-Jato nos estados.
Houve recuo nas operações, nas prisões e colaborações premiadas. Aos procuradores do Paraná, ela negou viagem à Suíça para troca de informações e liberação de recursos. Aos do Rio, travou o pedido de suspeição do ministro Gilmar Mendes e não avançou na delação do empresário Jacob Barata. Em São Paulo, os investigadores dizem que ela pouco fez na apuração de suspeitas envolvendo tucanos e emedebistas.
Mais recentemente, ela ampliou o desgaste ao propor a criação de ofícios especializados. As investigações seriam distribuídas a procuradores específicos dentro destes núcleos e não mais sorteadas conforme o Estado e o tipo de ação nas quais atuam - crime, meio ambiente, patrimônio cultural. A mudança abria margem para perda de autonomia funcional, com o procurador-geral podendo manter sob controle as investigações em curso.
O ponto culminante para transformá-la em persona non grata dentro da própria corporação, contudo, foi a atuação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a Lava-Jato do Paraná. Havia consenso no MPF de que a força-tarefa havia errado ao tentar gerir um fundo bilionário com recursos da Petrobras e os procuradores já haviam recuado quando Dodge acionou a Corte. Na ação, ela criticou o "o protagonismo de membros da instituição" e pediu anulação da medida. O STF aceitou o pedido e suspendeu o fundo, mas a atuação da procuradora-geral abriu caminho para que, no futuro, qualquer acordo seja questionado no STF, inclusive gerando processos contra os procuradores no Conselho Nacional do MP.
Diante de tanto desgaste e com um governo afeito a romper protocolos, a sucessão na PGR motivou pelo menos três procuradores regionais a ambicionarem o cargo máximo da instituição. Desde a Constituição de 1988, jamais um procurador regional venceu eleição ou foi nomeado, primazia restrita aos subprocuradores-gerais.
Desta vez, dois dos favoritos são procuradores regionais: Vladimir Aras, o preferido do ministro da Justiça, Sergio Moro, e Blal Dalloul, ex-secretário-geral do Ministério Público da União na gestão de Janot. A possibilidade de um deles vencer mobiliza os subprocuradores. Já circula pelos corredores da PGR a minuta de um mandado de segurança para recorrer ao STF, questionando a legitimidade de indicação de quem não esteja no ápice da carreira.
O que aterroriza a categoria, porém, é a possibilidade de Bolsonaro recorrer a alguém de fora do MPF. O advogado-geral da União, André Mendonça, disse que o governo pode escolher um membro do Ministério Público Militar (MPM) ou do Trabalho (MPT). A declaração coincide com uma aproximação de Bolsonaro com procurador-geral do MPM, Jaime Miranda.
Caso isso ocorra, os procuradores federais planejam um boicote à própria instituição. Nos bastidores, eles dizem que há um acerto para que ninguém aceite cargos de direção, inviabilizando o funcionamento do órgão.