A despeito da Revolução Farroupilha ir longe, ano após ano o gaúcho se pilcha, acampa, desfila seu garbo, celebra heróis, recorda feitos e desfeitas. Às vésperas deste 20 de Setembro não é diferente. Neste ano, contudo, a atmosfera está impregnada de incertezas. Indiretamente, o cenário político-econômico questiona a capacidade de o povo gaúcho eleger, governar, legislar, julgar - todos aspectos caros ao ideário rio-grandense.
Cientista política e pesquisadora do Núcleo de Inovação e Desenvolvimento Observatório do Trabalho da UCS, Ramone Mincato analisa o momento e afirma:
- A História é processo, logo, não tem bom nem ruim. Ela é.
Confira os principais trechos da entrevista:
Pioneiro: O 20 de setembro é uma data seminal para a cultura do Rio Grande do Sul. Diante do atual cenário político-econômico, o que o gaúcho tem a comemorar neste 2015?
Ramone Mincato: O 20 de setembro tem pelo menos dois significados. Um relacionado com a memória social, que a cada ano rememora um conjunto de atributos de um determinado grupo social, neste caso, os gaúchos. Entretanto, historicamente, a memória não é reflexo do real histórico. É uma representação simbólica do grupo que se diz gaúcho. O outro significado está relacionado com o momento atual que requer uma análise de conjuntura. Um breve olhar aponta que as nossas práticas sociais estão muito longe do exercício da liberdade, igualdade e da humanidade, os lemas do movimento de 20 de setembro e presentes na nossa bandeira. Isso nos leva a observar também a falta de entendimento de uma democracia, da justiça e, fundamentalmente, da pluralidade e alteridade, uma vez que esse grupo é preconceituoso. Todo grupo que se diz portador de um determinado conjunto de atributos, como certos, verdadeiros e ideais ou como modelo a ser seguido, tem a tendência de negar o outro, constituindo-se num grupo autoritário que reforça o preconceito e a discriminação, a exemplo do período de 1835 a 1845 (período da Revolução Farroupilha).
Historicamente, a Revolução Farroupilha serviu para dar uma moldura ao gaúcho, mostrando um povo aguerrido, libertário. Isso é verdadeiro? Por quê?
Não. Isso porque o grupo social denominado gaúcho no século XIX era heterogêneo, sendo constituído por ex-escravos ou negros livres, negros escravos, mestiços, indígenas, ladrões, foragidos da justiça, o que hoje poderia ser entendido como aqueles que estavam à margem da sociedade. Um grupo social sem cidadania, sem propriedade e sem emprego. Um grupo que foi usado pelas elites latifundiárias locais sem ter conhecimento dos ideais que moviam o ato de rebeldia.
O 20 de setembro está ancorado na figura de heróis, de homens que dominam a rédea, que conduzem a massa. O gaúcho ainda busca heróis?
A sociedade brasileira é caracterizada pelo padrão de dominação tradicional, necessitando ideologicamente ser reconhecida pelo culto de determinados vultos históricos como modelos ideais de comportamento, valores, educação. Ou seja, o mito tende a apagar e apaziguar as contradições sociais. Nem todos que cavalgam são estancieiros. Não podemos esquecer que a cultura da estância é da família patriarcal, onde o pai possuía pleno poder sobre a vida de suas propriedades: filhos, agregados, escravos e mulheres entre outros.
O que essa opção tem de bom e de ruim?
A História é processo, logo, não tem bom nem ruim. Ela é. Uma das tarefas do historiador é desmitificar e não mitificar.
O eleitor gaúcho foi negligente nas últimas décadas ao votar ou ao cobrar políticas públicas dos governantes?
Talvez ainda falte formação política, mas a sociedade ao cobrar políticas públicas demonstra que está no caminho do exercício da cidadania. A cidadania não é algo pronto e acabado. Ela é um processo sempre em construção. Infelizmente no Brasil a questão da cidadania é uma questão ainda de direitos humanos, uma vez que o básico não é garantido.
Como será o processo de reconstrução político-econômica do RS?
Tudo parece indicar que caminhamos para a continuidade do histórico processo de privatização da coisa pública. Continuamos a acreditar que a solução vem das cartilhas exógenas a nossa realidade.
Gaúcho é povo que cultiva o hábito de extrair lições das experiências. Que lições extrair desse momento tão difícil?
O movimento que se diz gaúcho não extrai lições das experiências históricas, mas sim reforça os padrões de dominação.
A Guerra dos Farrapos durou 10 anos. Foi uma década de perdas e ganhos, mas havia foco, as tropas batalhavam por um objetivo comum. Desde a redemocratização, nos anos 1980, os governadores jamais reelegeram sucessores. Tampouco algum governador se reelegeu. Essa alternância no poder pode ajudar a comprometer a implantação de ideias, programas de governo, políticas públicas?
A História não se repete, pois são contextos, tempo e espaços diferentes. Não dá para estabelecer esse tipo de análise política rasa.
Chimangos x maragatos, Grêmio x Inter, Caxias x Juventude, PT x PMDB. Essa histórica divisão do gaúcho ajuda ou atrapalha? Como?
A divisão apresentada é própria de uma visão positivista e linear da história, cujo entendimento reforça a dicotomia entre certo e errado. Talvez resida aí um dos problemas culturais para a democratização, o que envolve respeito ao pluralismo político e à diversidade social. A sociedade é heterogênea e muito mais complexa do que essas visões simplistas e do senso-comum transmitem.
O gaúcho se crê politizado, educado acima da média. Essa autoafirmação está muito presente no 20 de setembro por meio da música, dos desfiles, das vestimentas. A crise pode proporcionar algum abalo nessas crenças? Em outras palavras: somos, de fato, os melhores?
O CTG é um movimento permeado por um discurso ideológico que reforça o mito do gaúcho, mas que no seu próprio interior já é visível a pedagogia da hierarquia, como por exemplo a presença do patrão e do peão.
Entrevista
Cientista política de Caxias analisa o 20 de Setembro celebrado em meio à crise no RS
"Cidadania não é algo pronto", ressalta Ramone Mincato
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