Imagine começar o 4º ano do Ensino Fundamental e, um mês após o início das aulas, ver a escola ser interditada por problemas estruturais. Após alguns dias, as aulas são retomadas provisoriamente em outro prédio público, mas falta espaço para todos os alunos. Mesmo assim, o ano letivo segue. Meses depois, o fim do ano se aproxima com uma boa notícia: uma nova escola está em construção. A estrutura modular, erguida de forma emergencial, fica pronta no primeiro mês de aula da 5ª série, exatamente um ano depois da última interdição.
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Escola é interditada em Vila Cristina, em Caxias do Sul
Aulas na nova Escola Dr. Renato Del Mese, em Caxias do Sul, começam na próxima semana
Após obra precária, escola de Caxias do Sul teve novamente salas interditadas
O ano letivo transcorre sem problemas, acompanhado da expectativa pela construção de outra instituição permanente, com espaços cobertos e quadra de esportes, que não existem na escola temporária. A 6ª série, porém, tem início com novas preocupações. Quando chove, um dos acessos da escola modular alaga, prejudicando a entrada dos estudantes.
A empresa responsável pela obra é chamada e realiza os reparos. Só que, no decorrer do ano, as dificuldades se agravam: a umidade faz com que surjam buracos no piso de salas e infiltrações. Faltando menos de três meses para o fim do ano, o pesadelo recomeça e fitas amarelas indicam, novamente, a interdição de duas salas, banheiros e a rampa de entrada.
Essa é a realidade do estudante Tiago de Souza Bettega, 13 anos, e de outros tantos alunos da Escola Estadual de Ensino Fundamental Dr. Renato Del Mese, no distrito de Vila Cristina, em Caxias do Sul. A rotina de reformas, interdições e desinterdições evidencia décadas de descaso e falhas crônicas no planejamento do governo estadual: um novo prédio para a escola é demanda da comunidade pelo menos desde o ano 2000. A estrutura temporária, desde que foi inaugurada, tem de passar por reparos frequentes para seguir funcionando, conforme a direção do local.
— Teve vários problemas. Sempre falaram que ia ter uma escola nova, mas até agora não saiu. Pelo menos, sempre deu para ter aula — pondera Tiago, que recém iniciou o 9º ano, seu último na escola.
Para o estudante, a precariedade da Renato Del Mese, infelizmente, tornou-se normal e sempre será parte integrante das memórias de sua trajetória escolar.
— Nosso piso abre buracos, têm lugares que apodrecem e, de tempos em tempos, é feita uma operação tapa-buracos, que dá possibilidade de usar as salas — explica a diretora Irmtraud Goldbeck sobre a rotina da escola.
A estrutura das salas modulares foi inaugurada no início de 2014, depois de que os alunos passaram um ano estudando em salas improvisadas na subprefeitura do distrito (veja linha do tempo abaixo). As salas modulares custaram R$ 1 milhão aos cofres públicos, mas, observando a estrutura, é difícil ver para onde foi todo esse dinheiro: neste ano, as aulas só começaram normalmente porque a 4ª Coordenadoria Regional de Obras Públicas (Crop) concluiu os reparos necessários uma semana antes do início do ano letivo. O Pioneiro esteve na escola na última terça-feira (20) e constatou que, em pelo menos uma sala, o piso já começava a ceder novamente.
— É o material que foi colocado. É um compensado que não aguenta a chuva. A gente diz para os alunos não encostarem as classes, não pisarem. Agora, o pessoal (a 4ª Crop) emendou com madeira, aí dá para usar de novo. Espero que dure mais tempo. Emergencialmente, é possível usar a escola. Mas a gente não sabe até quando — lamenta Irmtraud.
Estrutura temporária virou permanente e demandas se acumulam
A última intervenção na escola reparou partes do piso e da rampa de acesso, que estava "afundando". A frequência com que os reparos têm de ser realizados, porém, impede que outras demandas sejam postas em prática. A atual escola Dr. Renato Del Mese não tem nenhuma área coberta, o que prejudica as aulas de Educação Física em dias chuvosos, e não é cercada, apesar de ficar próxima a uma rodovia.
— O cercamento já estava encaminhado, mas nos falaram que tem que ser uma coisa por vez — relata a diretora Irmtraud Goldbeck.
O terreno da escola, que fica atrás da subprefeitura, também é compartilhado por uma estrutura de concreto, não finalizada e anterior à construção da instituição, que está interditada. Uma viga corre o risco de desabar, mas não há nada que impeça a aproximação dos alunos do local.
De acordo com a titular da 4ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE), Janice Moraes, a escola ainda é tratada como temporária. Por isso, o Estado evita fazer investimentos permanentes no local.
— Nem tentamos fazer uma área coberta ali. O terreno em que foi construído a escola é muito úmido, ela foi feita por uma emergência. Estamos tentando mantê-la em condições _ aponta.
O próximo passo, segundo Janice, é tirar do papel um projeto para trocar todo o piso da instituição.
_ É uma obra de 2014 que, em 2015, já tinha problemas. Hoje, a escola ainda está na garantia. Mas a empresa já foi notificada sete vezes, e deixa sempre para o fim dos prazos. Trocam o piso e colocam o mesmo material. Achamos mais viável, no momento, tentar colocar um novo (piso) por nossa conta.
O Pioneiro não conseguiu contato com a Triedro Engenharia, Construções e Avaliações, empresa responsável pela obra.
Projeto do prédio definitivo "não existe"
Mesmo com todos os problemas, a comunidade escolar se desdobra para tentar manter tudo funcionando. Conforme a diretora, a solução tem sido concorrer a editais para conseguir recursos para melhorias e contar com a ajuda dos pais para pequenos reparos.
— Agora, queremos pintar a escola e conseguir uma cobertura pelo menos para a entrada, para proteger da chuva — antecipa.
A escola, que era para ser temporária, abriga os 12 funcionários e cerca de 80 alunos pelo quarto ano consecutivo. O aluno Tiago de Souza Bettega deve deixar a instituição no fim de 2018, para para cursar o Ensino Médio em Galópolis. Ele espera, porém, que o irmão Cassiano, de três anos, possa frequentar uma estrutura melhor quando entrar no Ensino Fundamental.
— Acho que, nessa época, já devem ter feito todas as melhorias — projeta.
A perspectiva da 4ª CRE, porém, não é animadora.
— Quando se faz uma escola para ser temporária, deve-se ter em mente um projeto permanente. Nós tentamos localizar esse projeto, mas ele não existia — informa Janice Moraes.
De acordo com ela, a Secretaria Estadual da Educação (Seduc) já tentou buscar espaços alugados no distrito para uma nova escola, mas nada foi encontrado.
— Não vejo a construção de uma escola nova como algo que aconteça logo — decreta.
MP cobra soluções permanentes
O Pioneiro questionou a Secretaria Estadual da Educação sobre os problemas da escola Dr. Renato Del Mese. Por meio da assessoria de comunicação, a pasta se limitou a dizer que o processo de troca do piso está em fase de elaboração de contrato e que "se está estudando alternativas na região, para que os estudantes sejam novamente realocados num outro terreno com melhores condições do solo".
Ao Ministério Público (MP), no entanto, o governo do Estado terá que dar explicações mais concretas. Em janeiro, a promotora Simone Martini instaurou inquérito civil para investigar os problemas na estrutura da escola.
— Na verdade, essa situação chegou até nós em função de uma demanda anterior da comunidade, que é a instalação de uma escola de Educação Infantil no distrito. Isso está sendo tratado desde 2014 com o município. Fomos apurar espaços disponíveis e, nesse meio tempo, vieram os problemas da Renato Del Mese — explica.
A promotora pretende, até a próxima semana, solicitar esclarecimentos da secretaria sobre a situação da escola e cobrar soluções para os problemas apontados.
— Eu vou pedir todas as informações e também o que vai ser feito. Inclusive sobre a escola anterior, porque lá tem um imóvel público parado, em um espaço que é importante para a comunidade — acrescenta Simone.
Durante o inquérito, não é descartada a realização de uma perícia no espaço atual da escola, para determinar se os alunos podem continuar ali ou necessitam ser deslocados para outro espaço.
— Era provisória (a escola), mas acabou ficando. Nós, de maneira geral, queremos que se reestruture toda a educação de Vila Cristina. O Estado tem de dar conta do Ensino Fundamental — defende a promotora.
LINHA DO TEMPO
:: A antiga estrutura da Escola Estadual Doutor Renato Del Mese foi interditada em 26 de março de 2013. O prédio, construído entre 1959 e 1963, tinha rachaduras, madeiras podres e cupins. A comunidade pedia uma nova escola há pelo menos 13 anos.
:: No dia 4 de abril daquele ano, os cerca de 90 alunos retornaram às aulas em quatro salas improvisadas na subprefeitura de Vila Cristina.
:: No fim de março de 2014, os estudantes voltaram às aulas em uma nova escola temporária com salas modulares. A estrutura custou R$ 998 mil.
:: No ano início do ano seguinte, a água começou a invadir a escola por uma das entradas, quando chovia. A Triedro Engenharia, Construções e Avaliações, responsável pela obra, efetuou os reparos.
:: No decorrer de 2015, porém, buracos no piso e infiltrações tornaram-se frequentes. Duas salas de aula e outra rampa de acesso foram interditadas.
:: Desde então, a Coordenadoria Regional de Obras realiza sucessivas intervenções para manter a escola em funcionamento. Os últimos reparos foram concluídos uma semana antes do início do ano letivo.
:: Em janeiro de 2018, o Ministério Público instaurou um inquérito para investigar os constantes problemas na estrutura da escola.
:: Na última terça-feira, dia 20, a escola funcionava normalmente, mas um buraco já reaparecia no canto de uma das salas de aula.