Apresentação ao ar livre com a Réplica de Caxias de 1885 como cenário, um gramado como palco, além da união de cores, som, iluminação e coreografias em harmonia. Essas são as características do espetáculo Som & Luz, criado na década de 1990 e que retorna à programação da Festa da Uva 2024 após um hiato de oito anos. Na releitura, idealizada por Guilherme Montanari e com direção artística de Zica Stockmans, há o talento de artistas circenses, bailarinos e músicos locais, que abrem os olhares da comunidade para uma jornada de reconhecimento com o fogo como anfitrião.
O elemento está presente, nos mais diferentes formatos, em todos os sete momentos da história contada pelo Som & Luz. Intitulado de Oblivion, que significa esquecimento ou desconhecimento, o espetáculo começa justamente por uma história poucas vezes contada.
Em 1850, o território era ocupado por indígenas Kaingang, que dependiam da fogueira para sobreviver, principalmente em meio ao frio típico da Serra. No gramado do espetáculo, bailarinos formam uma espécie de tribo, com coreografia ao redor do fogo e cena final que mostra a extinção da tribo. Somente o segundo momento narrado pelo espetáculo retrata a chegada dos primeiros imigrantes italianos, em 1875, trazidos por navios a vapor movidos pela queima do carvão em busca de uma terra de sonhos.
— A gente sabe da importância do imigrante italiano em toda a formação de Caxias do Sul, não é um desmerecimento. É só estender o olhar. Ao longo do processo, fui vendo que muitas pessoas, instruídas, não tinham ideia de que haviam povos originários em Caxias. Mas, sim, havia uma população de Kaingangs que habitava aqui. Os imigrantes chegaram depois e as colônias foram loteadas para eles — conta a diretora artística do espetáculo, Zica Stockmans, responsável pela costura dos momentos narrados pelo Som & Luz.
Em alguns momentos é utilizada uma tela branca, que mostra o espetáculo com a ajuda de sombras. Toda a iluminação é sincronizada e ajuda na troca dos momentos contados, fazendo com que o gramado seja palco e camarim no mesmo instante — sem que o público veja. A trilha sonora ao vivo, pensada por Beto Scopel e Rafa De Boni, e executada por eles e também por Vitinho Manske, figura entre um dos grandes acertos da apresentação — é difícil não se emocionar com Merica Merica executada na gaita.
— Tirando o Merica Merica, é uma trilha totalmente original. Começamos com uma melodia dos Kaingangs, que é um grito de guerra deles. O objetivo da trilha é ser uma coisa cinematográfica, que conta através da emoção, da alegria, da melancolia, da saudade do seu país, da guerra e traz a dança — descreve o músico e compositor Beto Scopel, que atua como trompetista no espetáculo.
A etapa seguinte, a partir de 1900, traz um casal de imigrantes com mala, enxada no ombro e um bebê no colo chegando na região e com o fogo fazendo a acolhida e iluminando os trajetos escuros, mostrando a chama presente nas casas, nos primeiros fogões, nas lamparinas e nas velas. É nesse momento que a fé, tão característica da comunidade, aparece, com o fogo como testemunha de muitas preces.
Outro momento explorado pelo Som & Luz, marcando o ano de 1910, é a chegada do trem e também da elevação à categoria de cidade. Neste capítulo, o fogo é responsável por mover as locomotivas que começam a levar para outros lugares o que é produzido aqui. Os bailarinos simulam o andar do trem com a ajuda de caixas, que vão se movimentando por eles uma a uma, em uma espécie de serpente pelo gramado. Duas caixas empilhadas, por exemplo, simbolizam o degrau para deixar a locomotiva.
— É tudo simbólico. Não tem um trem, o navio não aparece. Usamos o elemento água, com a ajuda da cenografia e dos bailarinos, para representar esse momento. A gente se aproximar desses símbolos para contar a história de um jeito não tão óbvio — conta Zica.
Elemento também se mostra de forma sombria
O fogo representado no Som & Luz também alimenta a indústria, representada por meio das faíscas que saem do processo de soldagem e com bailarinos representando metalúrgicos no gramado. Ao mesmo tempo que permite o desenvolvimento, o elemento também se mostra na sua forma mais sombria.
Na década de 1940, Caxias se destaca na produção de material bélico. Assim, o espetáculo relembra a explosão na antiga metalúrgica Gazola, em um episódio que enlutou a cidade durante a Segunda Guerra Mundial. A locução cita os nomes das vítimas: Anoema da Costa da Lima, Graciema Formolo, Maria Bohn, as irmãs Julia e Olívia Gomes, Tereza Morais e Irma Zago, e Odila Gubert.
— A gente quer exatamente contar o que foi esquecido, o que ficou da história que não é mais lembrado. Ao longo da pesquisa, fomos percebendo que o fogo acompanhava a trajetória, seja nos momentos bons, de evolução, e os nem tão bons. Foram pensados esses vários momentos, do melhor e do pior deste elemento, e fomos colocando nas imagens e trazendo-o de verdade para o espetáculo — conta Zica.
Antes do fim, o Som & Luz faz um apelo para a sustentabilidade, mostrando que o fogo também provoca desmatamento e poluição. A cena final é feita juntamente com o público, que fica posicionado nas arquibancadas.
Fogo é manipulado por artistas circenses
A releitura de 2024 do Som & Luz é única porque usar o fogo no espetáculo só é possível justamente por se tratar de uma apresentação ao ar livre — neste formato, a atração não poderia ser realizada em locais fechados, por exemplo. Toda a manipulação do elemento, incluindo cenas com malabarismo e o fogo sendo cuspido, é feita por artistas circenses, como Carla Vanez, Leonardo Coinoski e Thony Kazuli.
Ambos atuam com figurino especial, maquiagem feita por eles mesmos e lentes de contato — ambos levam em torno de 1h10min para ficarem prontos para a apresentação da noite.
— É uma maquiagem especial criada para este espetáculo. Depois, colocamos o figurino no camarim e preparamos cada uma das tochas, para deixá-las prontas e aptas para a cena. Tudo isso leva um bom tempo, inclusive no cenário, porque são várias cenas. É um elemento de risco, temos que ter a nossa segurança, do elenco, e por isso precisamos tomar todos os cuidados — descreve Carla.
O elenco é formado por 30 artistas da cidade, sejam eles de grupos de dança ou independentes. Foram dois meses de ensaio. Estar no Som & Luz é o melhor momento da trajetória do dançarino Éverson Borges, 24 anos, no mundo das artes. Há três anos no elenco da J.Dance Estúdio de Dança, ele começou a dançar depois de um caso de depressão, superado após o envolvimento com a cultura.
— Me apresentei com o grupo em Porto Alegre, foi uma experiência incrível, mas estar no Som & Luz está sendo mais incrível ainda. Conheci muita gente, fiz muitas amizades, é mexer com a emoção das pessoas. Estou me empenhando para poder crescer, evoluir e quem sabe um dia poder trabalhar como dançarino — conta.
A coreografia do espetáculo é feita por Juliano Dias e Uyara Camargo. Ela, que tem mais de duas décadas de experiência na dança, descreveu a missão como desafiadora, ao mesmo tempo que dá uma visão contemporânea para uma história contada há muito tempo. Além de pensar no movimento, ela também participa da apresentação — ela que dá vida à mulher imigrante na cena da imigração.
— Sou de Caxias, sempre me apresentei na Festa da Uva desde criança, seja desfilando, me apresentando nos palcos. Tive a oportunidade de assistir o Som & Luz no outro formato, e fico muito emocionada de estar fazendo parte desta retomada, como artista de Caxias do Sul — conta.
Público aprovou o espetáculo
Acompanhar o Som & Luz é estar atento na contação da história da cidade, ao mesmo tempo que os Pavilhões estão pulsando e recebendo os visitantes. O espetáculo tem duração de 40 minutos, tempo suficiente para emocionar e fazer refletir.
Moradora de Caxias do Sul, a servidora pública Larissa de Bertoli, 48, levou o marido, Adriano, 59, e os filhos Enzo, oito, e Adrian, 15, para assistir a apresentação da última quinta-feira (22).
— Estou arrepiada, emocionada, é lindo. A gente é daqui e temos essa oportunidade incrível. Nunca imaginei que o fogo estava tão presente na história. É um espetáculo completo, com dança, história, música. Mexeu muito comigo. Li sobre o espetáculo e ver é mil vezes melhor — descreveu.
Vizinhos dos Pavilhões, o publicitário Thiago Wilbert, 38, a enfermeira Liliane Bavaresco, 40, e a aposentada Ironita Wilbert também aprovaram o espetáculo. Wilbert destacou a trilha sonora ao vivo e a inserção dos povos originários na história, enquanto Liliane contou estar impressionada com o jogo de luzes. Ironita viu o primeiro Som & Luz, em 1996, e aprovou o que viu.
— A história é a mesma, mas a emoção muda. É reviver a nossa história. Esse cenário é lindo, com as araucárias de fundo. Tinha uma estrela enorme no céu. É muito maravilhoso — contou.
O espetáculo também conta com intérprete da Língua Brasileira de Sinais (Libras), profissional fundamental para que a analista de contabilidade Morgana Camargo pudesse acompanhar a apresentação.
— Senti a vibração das músicas, isso para mim foi bem importante, me emocionei em vários momentos por conta disso. O intérprete estava ali, em alguns momentos eu não compreendia bem e com a ajuda dele, com a contextualização, pude conhecer a história de Caxias, os momentos e aí eu entendia. Foi bem significativo. Eu não escuto, se não tiver o visual, eu não consigo — descreveu ela, em entrevista mediada pela intérprete Ediele Araújo.
Programe-se
- O quê: espetáculo Som & Luz
- Onde: Réplica de Caxias, nos Pavilhões da Festa da Uva
- Quando: apresentações neste sábado (24) e nos dias 26, 27 e 29 de fevereiro e 1º de março. Em caso de chuva, o espetáculo será reagendado.
- Quanto: os ingressos custam R$ 10 e devem ser adquiridos de forma online no site do Sesc. É necessário adquirir ingresso para entrada no parque, que custa R$ 20.