Há 15 anos, o governo federal lançava a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, com o objetivo de assegurar a inclusão das crianças e adolescentes com deficiência ou superdotação no ensino regular. O documento serve de base para orientar Estados e municípios, incluindo Caxias do Sul, no tema. Por relatos de pais, professores e profissionais, o cenário é de que barreiras de aceitação e a busca pelos direitos foram superadas desde a implementação.
Além disso, desde então, uma lei federal estipula que as escolas de ensino básico tenham o Atendimento Educacional Especializado (AEE), que serve de apoio aos estudantes com deficiência com encontros no contraturno escolar, além de auxílio aos professores para a criação de um plano pedagógico individual. O formato está bem estabelecido nas redes estadual, municipal e particular. Porém, no dia a dia, situações que pareciam definidas tornam-se o centro de debate entre os envolvidos neste contexto, como qual caminho seguir na educação do público especial, a necessidade do serviço de cuidadoria, conhecido como monitoria, e a carga de professores que acolhem este público.
Como está a educação inclusiva em Caxias
De acordo com a Secretaria Municipal de Educação (Smed), as 83 escolas do município tem cerca de 1,2 mil estudantes especiais, sendo que cerca de 700 têm o transtorno de espectro autista (TEA) — o que leva a rede a ter uma assessoria especial aos pais e responsáveis deste público. Além do atendimento no AEE, há uma assessoria pedagógica dividida em cinco regiões, com cinco profissionais e mais duas assessoras para projetos. De acordo com a direção pedagógica da Smed, o grupo auxilia professoras, realiza estudos de caso e acompanha os planos de atendimento individuais. Os estudantes passam por uma equipe multifuncional, composta por psicólogo, assistente social e uma professora especialista em educação especial, com a possibilidade de receberem o cuidador.
— Todo estudante com deficiência que busca a rede pública municipal tem a matrícula garantida. Se os estudantes têm alguma necessidade ainda mais específica de higiene, alimentação ou locomoção, então é feita uma avaliação para ver se necessitam de um acompanhamento mais individualizado. Aí, tem o trabalho de cuidadoria educacional — reforça a diretora pedagógica Paula Martinazzo.
A rede tem ainda projetos, como a equoterapia, que atende cerca de 60 alunos no contraturno. O grupo prioritário é de alunos com autismo ou que tenham dificuldade maior de mobilidade, como cadeirantes.
— Percebemos que há um estímulo importante com esses estudantes e para essas crianças — observa Silvana Cagol, gerente de educação especial.
Já conforme a 4ª Coordenadoria Regional de Educação (4ª CRE), o Estado segue o formato de atendimento com o AEE e nas salas com professores.
Na rede particular
A representante do Sindicato do Ensino Privado (Sinepe) Serra, Marina Matiello, afirma que as escolas buscam atender os objetivos da Política Nacional de Educação. Da mesma foram que na pública, a rede proporciona o acompanhamento de cuidadores e disponibilizam profissionais como coordenadores pedagógicos, auxiliares de disciplina, orientadores educacionais ou psicólogos e o professor de atendimento educacional especializado. Conforme Marina, esse professor é referência no atendimento dos alunos inclusivos, atende individualmente, auxilia no plano de desenvolvimento individual, orienta professores, acompanha o desempenho do estudante e realiza reuniões com pais e profissionais.
Em Caxias, a rede particular também tem duas escolas que oferecem Libras (Língua brasileira de sinais) aos funcionários e estudantes, que é o Colégio La Salle Carmo e a Escola Pastorinhas. Na rede pública, a referência a estudantes surdos é a Escola Helen Keller.
— Para melhor atender a demanda de inclusivos, as escolas particulares de Caxias do Sul participam de formações contínuas, seja da própria escola ou de outras entidades e contam com o Sinepe, tanto para formação como para esclarecimentos pedagógicos e jurídicos sobre a inclusão. As escolas particulares atendem as demandas de inclusão. No entanto, entendo que precisamos que as políticas públicas nos deem, além de diretrizes, programas e ações que auxiliem, de fato, os inclusivos e suas famílias — destaca Marina.
Reflexão sobre o ensino
Com experiência de 18 anos com a educação inclusiva, a psicopedagoga e professora Taís Branco Aver nota que existe uma evolução científica na área. Falta, porém, que isso seja colocado em prática. Para ela, o primeiro desafio ainda está na forma como a educação é vista no Brasil, em que o desenvolvimento, muitas vezes, é quantificado por provas e o mesmo padrão é buscado para todos.
— Ainda temos uma concepção de educação muito formatada. Todo mundo tem que ser igual. Não é nem parecido. É igual. Então, imagina uma pessoa que é muito diferente do que se espera. Como que isso fica? — questiona Taís.
O debate pelas formas de ensino leva a um dilema comum sobre a educação especial: utilizar a escola regular ou a especial? A psicopedagoga explica que cada caso deve ser analisado. Um exemplo mencionado é a avaliação sobre como uma criança ou adolescente com deficiência sente-se no ensino regular. Há casos, atendidos por ela, em que a melhor saída foi encontrar uma escola de ensino especial pelo estudante estar em sofrimento, seja por uma troca constante de monitoria ou por isolamento — o que, inclusive, pode causar bloqueio na aprendizagem. Da mesma forma, há casos em que o melhor caminho é permanecer na educação regular.
— Tenho visto que o pensamento é muito radical, polarizado. Ou tu é uma coisa, ou é outra. Não existe o meio-termo. Houve pessoas que disseram que tem que acabar com as escolas especiais, que os alunos têm que estar nas escolas regulares. Quando tratamos de seres humanos, não existe isso. Cada ser é um. Quando me perguntam como fica o desenvolvimento dessa criança, precisamos pensar que criança é essa. Será que ela sendo especial, realmente tem que estar em uma escola regular? Será que para essa criança, a escola regular é o melhor caminho? A escola especial também é importante em várias situações — reflete Taís.
No atual contexto de educação no país, ela vê que as escolas especiais ainda podem oferecer turmas menores, professores especializados e atividades que incluam os estudantes. O mesmo investimento é buscado no ensino regular mas, como nota a profissional, isso ainda não ocorre e deveria ser priorizado.
— Não dá para pensar o que custa mais, o que é custo e o que é investimento. Então, sim, (precisa) suporte para o professor. Mas, também pensar em coisas práticas, como espaço físico, número de alunos, qualificação desses monitores. Eu vejo sofrimento das minhas colegas professoras, eu vejo sofrimento dos pais. Vejo meus pacientes que precisam dar conta de coisas que não estão exatamente adequadas para a necessidade deles — analisa Taís.
"Qual inclusão?"
Além destes desafios, há pais e mães que ainda observam um problema cultural, que gera sofrimento para crianças e adolescentes. Duas mães, que preferem não ser identificadas, observam constantemente o sofrimento dos filhos quanto trata-se de socialização com os colegas. Uma delas tem uma filha especial de 14 anos matriculada em uma escola da rede particular na área central de Caxias. A mãe vê que a estrutura e a aprendizagem são ideais, mas desabafa que a menina é excluída por colegas.
— Tá lá na raiz o problema. Aquilo vem vindo de casa, passa pela escola e vira um efeito dominó. Por isso, faço a pergunta: 'Qual inclusão?' Vamos falar de inclusão? Que inclusão? Tem que pedir para participar de qualquer coisa, tem que pedir para um colega fazer trabalho junto — lamenta a mãe.
Ela lembra que na infância da filha este tipo de situação não ocorria. Mas, na adolescência o comportamento foi notado. Em uma situação, a mãe precisou ir até a escola para sugerir uma forma de terminar com a exclusão depois da filha ter ficado sem grupo em um trabalho. Ela relembra que, mesmo pedindo para entrar nos grupos, ninguém a aceitou.
— Essas últimas semanas têm sido muito difíceis porque estou sofrendo com a escola. Já foi conversado, foi falado e eles não mudam. O que percebo é que aquela escola não serve mais para mim, não estou sendo incluída. Não estou me sentindo bem — relata a menina.
Uma outra situação desagradável foi o que fez uma outra mãe retirar o filho de 16 anos de uma escola particular no centro de Caxias. No início de 2022, ela encontrou o garoto sozinho na biblioteca enquanto a turma estava em aula na sala. O menino, que precisava de um cuidador, sente dores no corpo e necessitava de um lugar para repousar de tempos em tempos. Conforme a mãe, o lugar combinado foi a biblioteca, mas o filho deveria seguir as atividades. Quando entrou de surpresa no local, viu uma cena que a incomoda até hoje:
— Decidi passar no colégio para ver se precisava de algo. Entrei na portaria, subi e vi que não estava na sala. Já eram 11h. Fui na biblioteca e pensei que seria a coisa mais fofa ele fazendo atividade no pufe. Quando abri a porta, vi ele sozinho, largado. Pedi o que estava fazendo ali. Não tinha ninguém. Ele estava olhando para o teto e deitado no pufe.
A mãe o tirou da escola imediatamente. Hoje, o menino está matriculado no ensino regular no litoral, onde a família também tem residência.
Procura por cuidador é recorrente
Entre os desafios da rotina na rede pública está a procura pelo serviço de cuidadoria. A promotora regional da educação de Caxias, Simone Martini, relata que primeiro é necessário uma clareza de quais situações demandam essa monitoria — que, conforme lembra, não é para ser um segundo agente pedagógico em sala. Geralmente, o cuidador é designado para auxiliar crianças e adolescentes a partir dos critérios de higiene, alimentação e locomoção:
— É aquele que auxilia os alunos a superar as suas barreiras no contexto escolar para atividades como higiene, alimentação, locomoção e outras necessárias no ambiente escolar e que não substitui o professor. Ele não é um agente pedagógico.
Além do auxílio nestas situações, há casos de crianças e adolescentes que podem ter crises, o que coloca eles e os demais em risco. Essas situações também são analisadas e recebem o monitor.
Todos os dias, às 6h da manhã, ele acorda, veste o uniforme e eu pergunto, 'Onde que vai?'. 'Eu vou pra escola', ele me diz. Mas, não tem escola
PAI DE ALUNO DA REDE ESTADUAL
Garoto está sem monitor
Simone lembra ainda que a recomendação não parte de médicos ou fisioterapeutas. A definição é feita a partir de avaliação dos professores e de uma equipe técnica das redes escolares. Para a promotora, o desafio está na demanda maior e na falta de interessados para ocupar o cargo.
— A pandemia trouxe uma involução aos alunos e uma demanda maior para esses profissionais no ambiente escolar. Há dificuldade das mantenedoras públicas em fazer essa contratação. Há também divergências técnicas entre as escolas e mantenedoras, e também entre os pais que acham que o filho precisa. Mas a questão é técnica — explica Simone.
Sem aulas pela falta de cuidador
O desafio pela busca de cuidadores é sentido este ano por duas famílias de Galópolis. Dois adolescentes com TEA, de 18 e 16 anos, frequentaram uma escola de Ensino Médio da rede estadual por cerca de 20 dias no atual ano letivo. O motivo é que foi apenas durante o período, em maio, que os meninos tiveram uma cuidadora. A profissional pediu demissão e, assim, os alunos voltaram a ficar em casa. O pai do garoto de 16 anos relata que o filho ama ir para a escola. Sem a possibilidade, ele frequenta a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Mas não esquece das aulas.
— Todos os dias, às 6h, ele acorda, veste o uniforme e pergunto: 'Onde vai?'. 'Eu vou pra escola', ele me diz. Mas não tem escola — lamenta o pai.
O mesmo ocorre com o estudante de 18 anos. Por sugestão da mãe, o garoto tem atendimento de uma hora semanal, no AEE. Mesmo assim, a mãe conta que o adolescente está mais "nervoso" e "ansioso" sem a rotina escolar:
— Ele fica muito agitado, difícil dele entender. Esse pouquinho por vez durante a semana deixa a gente confuso e ele mais ainda.
No caso da família, a ausência na escola gera também a falta de pagamento do Programa Todo Jovem na Escola, que garante um auxílio de R$ 150. O dinheiro era utilizado para ajudar em casa.
— Não é que não quero levar, eu estou fazendo minha parte — desabafa a mãe.
Questionada, a 4ª CRE afirma apenas que situações como esta são pontuais.
Entidades de convivência passam por situação semelhante
Serviços de convivência e fortalecimento de vínculos, que atendem crianças e adolescentes em vulnerabilidade social, também sofrem impactos pela falta de monitores. O convênio entre Fundação de Assistência Social (FAS) e entidades não prevê este profissional, o que leva a uma lacuna no atendimento. É o que ocorre, por exemplo, com a Casa Anjos Voluntários. A organização atende 200 crianças e adolescentes, sendo que cerca de 50 tem deficiência. O assistente social e coordenador, Gamaiel Bourscheidt, diz que a entidade faz todo o esforço possível para acolher o grupo, mas sem este apoio cria-se um desafio:
— Muitas vezes ficamos de mãos amarradas. A gente tem uma equipe padrão. Temos seis educadores sociais e cada um tem o seu grupo, onde faz as atividades. Acaba que cada grupo tem média de 20 a 30 usuários. São números grandes de usuários e tem crianças e adolescentes com as suas peculiaridades.
A falta do suporte de um cuidador não é o único desfalque. Por exemplo, não há a distribuição de materiais adaptados para crianças ou adolescentes cegas ou o direcionamento de um profissional que se comunique por Libras para atender aos surdos. Da mesma forma, o assistente social precisa estar sempre preparado no caso de uma criança ter alguma crise.
— Eu sempre falo, o tempo é muito precioso. Se é algo que demora, passou essa fase. E pensando em questão de desenvolvimento... — destaca o assistente social.
A entidade fez as solicitações para a FAS. A reportagem procurou o órgão, mas não obteve resposta até a publicação desta reportagem.
A experiência das professoras
Com mais de duas décadas de experiência, duas professoras da rede municipal, que preferem não ser identificadas, relatam que o trabalho integrado é mais desafiador do que aparenta. As docentes desabafam que sentem-se "sobrecarregadas" pela atual forma como ocorre a inclusão. Para elas, existe uma visão de que a maior parte do acolhimento fica a cargo dos professores quando, muitas vezes, há mais coisas acontecendo na sala de aula.
— Tive casos de crianças que não conseguem parar, que vem super agitadas. Elas gritam, se atiram no chão. Imagina ela gritando, te agredindo e te mordendo em uma sala de aula com mais 27 crianças. Há crianças que não tem diagnóstico, mas têm dificuldade de aprendizagem e tem que dar conta disso. Como esse ambiente está propício para aprenderem? — questiona uma das professoras.
As professoras entendem que existe a necessidade um acompanhamento mais detalhado para a definição de um serviço de cuidadoria. Outro desafio sentido é que há pais que não buscam o atendimento adequado para crianças e adolescentes, bem como não seguem as orientações dos docentes e da escola.
— Não somos contra a inclusão, mas a forma como está acontecendo está prejudicando todo mundo — diz a professora.
Conforme a direção pedagógica da Smed, os professores podem buscar ajuda da coordenação das escolas e do profissional especializado na educação especial, para ter auxílio na docência compartihada.
— O trabalho da sala de aula é desafiador. Se tivermos, 23, 28 ou 30, são estudantes com as suas necessidades diferenciadas, independente de ser público da educação especial ou não. E quando falamos em inclusão, falamos em processos. A gente está sempre no processo de incluir alguém — responde Paula Martinazzo.