Os dedos cruzados das mãos pequenas de Kachemi Damis, seis anos, anunciavam a ansiedade do menino de família haitiana prestes a ver pela primeira vez o pai e os irmãos. O pequeno nasceu no Brasil porque a mãe, Magdala Damis, 45, veio ao país na esperança de uma vida longe dos desastres naturais que já vitimaram mais de 250 mil pessoas no Haiti, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). No reencontro da família, que ocorreu na rodoviária de Bento Gonçalves, no dia 10 de janeiro, os corações disparados se uniram em melodia às lágrimas emocionadas dos imigrantes que ficaram sete anos separados.
Com sotaque embargado e algumas palavras arrastadas, a matriarca lembra a "emoção muito forte" sentida quando viu todos juntos pela primeira vez. As 60 horas de viagem feitas pelo esposo, Robert Theagene Celine, 52, e os filhos Sterline Theagene Celine, 22 e Merten Theagene Celine, 12, pareceram durar mais que os anos que passaram distantes.
O reencontro entre eles foi possível após uma rede de solidariedade formada pela família da estudante de psicologia Thaís de Matos Magagnin, que conheceu a história de Magdala e Kachemi em 2018. A jovem era estagiária no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CRAS) de Bento Gonçalves, quando se deparou com a mãe que buscava no programa CadÚnico a oportunidade de ter o que comer. Se encantando com o pequeno haitiano que abraçava ela sempre que a via, Thaís acabou se tornando madrinha de Kachemi e amiga de Magdala.
Com uma vaquinha online criada pela jovem de 27 anos, doações e o dinheiro que Magdala guardava do trabalho que faz na equipe de limpeza terceirizada da prefeitura de Bento Gonçalves, R$ 33 mil foram arrecadados e os familiares vieram para a Serra gaúcha.
— O Kach pulava de um lado para o outro na rodoviária e falava o tempo inteiro que não via a hora de abraçar o pai. Ele tava muito ansioso para finalmente abraçar esse pai que ele só conhecia por videochamada — lembra Thais, que acompanhou de perto o reencontro na rodoviária.
Mãe sozinha em país estrangeiro
Quando chegou no Brasil, em 2016, Magdala estava grávida de cerca de seis meses. Sem conhecer ninguém, acabou viajando de ônibus de Campinas, interior de São Paulo, até a capital gaúcha, Porto Alegre. De lá, chegou em Bento Gonçalves. No município da Serra, chegou a dormir na rua e precisou deixar o pequeno Kachemi sob cuidados de uma mulher que conheceu na rodoviária, para que ela pudesse trabalhar e o pequeno ser alimentado.
Além das dificuldades por não ter comida e moradia, a imigrante haitiana enfrentou preconceito e casos de racismo.
— Quando descobriam que ela era haitiana, mandavam ela embora, porque não queriam que ela trabalhasse lá e não queriam deixar ela alugar nenhum lugar pra morar — revela Thais.
Para aguentar tudo, a mãe de três filhos encontrou na fé e na amiga brasileira a força que precisava.
— Não conhecia ninguém, não sabia falar português, não tinha para onde ir. Foi Deus, só Ele para me ajudar e mais tarde a Thais, que é um anjo na nossa vida — conta Magdala.
No país caribenho, a filha mais velha da haitiana, Sterline, aprendia a crescer longe da mãe e do pequeno Kachemi. A jovem lembra que sentiu falta até dos puxões de orelha que recebia quando fazia algo de errado. Filha, pai e irmão encontraram uns nos outros o apoio para enfrentar os sete anos de saudade e o período de insegurança no país marcado por desastres naturais.
Em 2021, um terremoto de magnitude 7,2 atingiu o Haiti e destruiu a casa em que moravam. Três dias depois, o ciclone tropical Grace e mais um terremoto, esse de magnitude 4,9, abalou o Haiti deixando familiares da haitiana desabrigados durante dias.
— A parte mais feliz agora é poder fazer comida para a família inteira, ter a mesa cheia de pessoas, estar com eles todos aqui comigo. Eu quero cuidar deles, meu marido teve alguns problemas mentais durante esses anos e agora posso cuidar deles — diz a haitiana.
Busca por pertencimento
Desde que chegaram ao Brasil, os filhos e o esposo de Magdala enfrentam a dificuldade de se comunicar e conseguir fazer parte da sociedade. Sem saber falar português, não encontraram um local que ensine a língua portuguesa. Outra dificuldade é a inserção de pai e filha no mercado de trabalho e do filho do meio, Merten, em conseguir uma vaga na escola.
— Agora eles precisam aprender a língua. A Sterline quer ser enfermeira, ela sonha em aprender a falar português. Conhecendo eles e conversando de pouquinho, a gente consegue ver a vontade que eles têm em aprender. Eles querem estar aqui, querem fazer parte desse país. Só precisam de oportunidade — diz a estudante de Psicologia.
Segundo o campus de Bento Gonçalves do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), anualmente são oferecidas duas turmas para aulas gratuitas de português , voltadas para estudantes estrangeiros. As aulas ocorrem em uma turma de 30 alunos por semestre e as inscrições são feitas por um formulário online disponibilizado no site do instituto. Para o primeiro semestre de 2023, ainda não há previsão de quando será iniciado o período de matrícula.
Por enquanto, a família está morando em uma casa improvisada no piso térreo da casa dos pais de Thais e aguarda por oportunidades de trabalho e educação.