Dois casos registrados nos últimos dias em Caxias do Sul demonstram o quanto a denúncia é importante para interromper ciclos de violência ou até prevenir casos de abuso e maus-tratos a idosos. Em ambas as situações, uma ocorrida no dia 10 e outra na última quarta-feira, dia 14, partiram da comunidade as informações que levaram ao atendimento por parte das autoridades responsáveis.
E é essa a regra: os órgãos da área da segurança só ficam sabendo desse tipo de caso por meio das denúncias. O problema é que muitas pessoas ainda não sabem a quem recorrer para reportar os fatos e nem sempre é fácil. Mas, é importante ressaltar que existem canais próprios para receber esses relatos, que podem ser anônimos. Quanto aos órgãos da segurança, eles têm o dever legal de agir, sob pena de responsabilização.
Na maioria esmagadora das vezes, as situações de violência contra idosos ocorrem no ambiente doméstico. Por isso, quem acaba percebendo os indícios ou sinais são as pessoas do convívio mais próximo ou moradores dos arredores da casa da vítima. Decorre daí o fato de muitos dos denunciantes não quererem se identificar, seja para não se envolver diretamente ou por medo de sofrerem represálias (motivo pelo qual os nomes serão preservados nessa reportagem). Isso acaba inibindo as comunicações. Mas, quando as pessoas vencem essa barreira, deparam com outra dificuldade: a de serem atendidas.
No caso do dia 10, moradores estranharam que uma idosa há dias não aparecia, não saía de casa e nem era vista na residência. O assunto ganhou corpo na vizinhança, que se preocupou que algo de mais grave pudesse ter acontecido. A partir de uma ligação anônima ao Fórum, houve uma mobilização por parte da Polícia Civil, Brigada Militar (BM) e judiciário. Porém, antes disso, o denunciante relatou que teria ligado para o 190 e sido informado de que a BM não poderia atender ao chamado.
Guarnições da BM foram ao local, ouviram gemidos que poderiam indicar que a idosa estivesse em risco e arrombaram a porta. Ela foi encontrada aparentemente bem, sem lesões. Inicialmente, relatou que o filho a ameaçava e se sentia insegura. Depois, na delegacia, abrandou o depoimento, falando que o filho não a ameaçou.
— Eu tenho muito medo e muito receio que ele me machuque. Ele ainda não me machucou porque quando noto que ele está muito agressivo, comigo também, eu saio de perto, vou para outro local, evito a agressão. Ele ameaça, mas ele ameaça porque é doente — relatou a idosa aos agentes, que estiveram na casa referindo que o filho tem doença psicoemocional.
Ela seguiu contando que não se sente segura morando com o filho:
— Não me sinto segura. É impossível se sentir segura, porque ele é imprevisível. Ele faz chantagem o tempo inteiro: "Mãe ou tu faz assim, ou te tiro o computador. Ou tu faz assim ou te tiro o celular." E ele me tira mesmo as coisas — contou, confirmando que a intenção do filho é impedir que ela se comunique com os outros.
Nesse caso descrito, a polícia questionou se a idosa queria medida protetiva em relação ao filho e ela não quis. Também não desejou que ele respondesse criminalmente. A delegada Thalita Giacometti Andrich, que responde interinamente pelo Cartório do Idoso, disse que foi instaurado procedimento e serão ouvidas testemunhas para averiguar a extensão da situação.
O que diz o Estatuto do Idoso:
:: É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do Poder Público assegurar ao idoso, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária.
Mulher vai responder por lesão corporal contra a mãe
Um caso que chocou a comunidade e teve desfecho na última quarta-feira começou há bem mais tempo. Uma pessoa percebeu que havia alguma coisa errada em um dos apartamentos de um edifício da Rua Pinheiro Machado, no centro de Caxias. Ao observar mais atentamente, presenciou agressões a uma idosa. Mas as ações eram inesperadas e a pessoa não conseguia filmar ou fotografar. Na quarta, ela viu ter início o que seria uma sequência de agressões e, com ajuda de amigos, finalmente, obteve as provas que queria para denunciar.
— Eu pensei: vou me manifestar, a gente precisa ajudar, porque essa senhora precisa de socorro, precisa de ajuda — desabafou.
A denunciante relatou dificuldade em oficializar a denúncia. O caso já tinha sido relatado ao Ministério Público (MP) de Caxias por e-mail, no dia 7 de abril. Entretanto, não houve resposta. No dia dos fatos, a denunciante também ligou para o Cartório do Idoso e falou com uma servidora, que disse não poder fazer nada se não tivesse o nome da idosa e outros dados. A denunciante também ligou para o 190, da Brigada Militar, e insistiu com o policial para que uma viatura fosse enviada.
— Eu pedi: me ajuda, porque essa senhora vai ser morta. Faça alguma coisa. Me senti tão pequena, mas, no fim, valeu. Ontem (quarta) eu disse: Vamos conseguir as provas que precisam e vamos acionar o mundo, se for preciso, para que chegue nas autoridades, porque isso precisa ter um fim. Foi a gota d'água. Ela (idosa) foi jogada no chão duas ou três vezes, foi estrangulada — contou a denunciante.
Viaturas da BM e da Polícia Civil chegaram ao local, por volta das 13h15min. Os policiais entraram no apartamento pela sacada e prenderam a filha da idosa em flagrante. A mulher de 36 anos vai responder por lesão corporal qualificada pela violência doméstica. Por ser um crime com pena prevista menor do que quatro anos, admite fiança. Ela pagou e foi liberada ainda na noite dos fatos. O valor não foi informado.
— Ela (a filha da idosa) está solta. Pagou fiança e dormiu na cama dela. Eu não acredito nisso. Isso acabou comigo. Ainda quero acreditar que existam caminhos para se fazer o certo, mas é desesperador saber que as leis não funcionam — lamentou a denunciante.
A idosa de 64 anos saiu do prédio em uma cadeira de rodas e foi levada pelo Samu à UPA Central para exames em função de um ferimento na cabeça. Depois, ficou sob os cuidados de outros dois filhos. Ela não chegou a ser ouvida pela polícia. A delegada Thalita Giacometti Andrich explica que alguns crimes cometidos contra as pessoas com mais de 60 anos não necessitam que a vítima manifeste a vontade de dar andamento à investigação. Um deles é o de lesão corporal. Um inquérito foi instaurado.
O MP informou, por meio da assessoria de imprensa, que a partir do email enviado pela denunciante foi instaurado procedimento para apurar os fatos relatados. Porém, isso não foi dito à pessoa que fez a denúncia.
O que diz a defesa:
"Em relação ao fato ocorrido no dia 14/04/2021, onde estão sendo compartilhados em redes sociais vídeos que supostamente apresentam filha agredindo a mãe no centro da cidade de Caxias do Sul/RS, vem informar que a idosa passou por atendimento médico e avaliações de saúde, sendo que se encontra bem, saudável e segura, estando sob cuidados de seus demais filhos e de equipe qualificada. Declara-se inicialmente que os fatos como estão sendo difundidos na mídia e em redes sociais não condizem com a realidade do ambiente familiar da idosa, o que será comprovado na seara competente. A família pede apoio, compreensão e respeito da comunidade, agradecendo a preocupação comunitária sobre o caso da idosa, mas pedindo respeito à filha, para que seja aguardado o resultado da devida investigação policial e o deslinde do processo judicial."
Lucas Preussler, advogado da filha da idosa
Polícia Civil e Brigada incentivam denúncias
A delegada Thalita Andrich reforça a importância da participação da comunidade denunciando os casos e coletando materiais que corroborem com as informações, como fotos, vídeos e áudios.
— Esse é o comportamento que esperamos e que pedimos que a população tenha, no sentido de que acionem as autoridade que possam comparecer nos locais para verificar a situação, se está acontecendo algum crime, a extensão e a gravidade. Isso é bem importante para nosso trabalho porque, muitas vezes, ficamos de mão amarradas, sem ter esses elementos que podem nos ajudar a agir nesses momentos — declarou a delegada.
A Brigada Militar reiterou que o 190 é o canal telefônico da corporação para denúncias, inclusive, envolvendo idosos, e que as ocorrências recebidas são atendidas.
— É muito importante que a comunidade faça a denúncia porque a polícia trabalhando junto com a comunidade, aí sim, conseguimos fazer alguma coisa. É por meio das denúncias que ficamos sabendo o que acontece — ressaltou a tenente Mileide Ramos Candido da BM, coordenadora da Patrulha Maria da Penha, que acompanha o cumprimento de medidas protetivas nos casos de violência doméstica em Caxias.
A presidente do Conselho Municipal do Idoso, Daniele Rech, diz que uma reunião será agendada para tratar sobre o fluxo de atendimento que deve haver, desde o local para o qual é melhor fazer a denúncia até o prosseguimento das ações.
— Com o Cartório do Isoso vamos ter como otimizar e qualificar o atendimento. Mas vamos ter que alinhar alguns fluxos. Hoje, percebemos que tem situações em que não conseguimos dar o andamento que gostaria — declarou Daniele.
O advogado criminalista Ivandro Feijó explica que os órgãos de segurança têm o dever de agir quando acionados:
— Quando pensamos em órgãos, são entidades. Mas quando pensamos no policial militar que atende e não age, ele está prevaricando. Assim como, o promotor de Justiça que recebe uma denúncia e pouco caso faz. Ou seja, tomou conhecimento, tem o dever de agir e não o fez. Fora a esfera administrativa que cada órgão segue a sua conduta. Com certeza, a responsabilização existe a partir do momento em que se consegue identificar da instituição a pessoa que não agiu.
O operador do Direito sugere uma formação dos agentes da segurança como foi feito no caso da Lei Maria da Penha e Estatuto da Criança e do Adolescente. E que os órgãos de segurança deveriam ter uma comunicação mais efetiva com Conselho do Idoso, assim como com o Conselho Tutelar. Mas ele também acredita que o anonimato enfraquece a denúncia.
Para o advogado Tiago Rombaldi dos Santos, no que se refere à legislação destinada à proteção aos idosos pelo Estado, a sociedade está bem assistida. Contudo, segundo ele, embora sendo dever do Estado, os mecanismos de proteção ao idoso, na prática, mostram-se burocráticos, precários e deficientes:
— Faz-se necessária a criação de uma delegacia específica de Proteção ao Idoso, com delegado e policiais próprios para o atendimento das ocorrências e demais procedimentos. E essa proteção esbarra na falta de uma política pública eficiente, na falta de investimentos do Estado e falta de material humano (policiais), aumentando ainda mais a vulnerabilidade dos idosos e a sensação de ausência de proteção. É importante ressaltar a possibilidade de que eventual omissão do Estado, representado por seus agentes (Ministério Público e órgão de segurança), que venha a ocasionar situações de risco à vida e à integridade do idoso, poderá resultar em responsabilização do mesmo, via ação judicial indenizatória, desde que o idoso comprove a referida omissão.
Como denunciar:
:: Disque 100 ou Disque 180: o serviço é 24 horas. Depois de uma filtragem, o caso chega à delegacia da Polícia Civil encarregada, no caso, em Caxias, ao Cartório do Idoso vinculado à Delegacia Especializada em Atendimento à Mulher.
:: Diretamente no Cartório do Idoso, na Central de Polícia Civil (Rua Irmão Miguel Dário, 1.061, bairro Jardim América), de segunda a sexta-feira, das 8h30min às 12h, e das 13h30min às 18h.
:: À Brigada Militar, por meio de ligação ao 190 (serviço 24 horas, mais voltado a atendimento em tempo real) ou WhatsApp: (54) 98414-1178 (mais voltado a casos recorrentes).
:: Ao Ministério Público Estadual, pelo email mpcaxias@mprs.mp.br.
:: As denúncias podem ser anônimas, tanto aos números de telefone, quanto no Cartório, onde também é possível registrar ocorrência, daí sim, com identificação.
:: A polícia alerta que é importante fornecer o endereço do local onde ocorrem os fatos e quanto mais dados os denunciantes informarem sobre os fatos relatados, mais chances o caso tem de ter andamento. Podem ser fornecidas fotos, vídeos, áudios.