No ano em que o instinto de autopreservação aflorou no mesmo ritmo da negação da ciência, a covid-19 foi mais forte e silenciou a voz de 887 pessoas em 56 cidades da região. Oitocentas e oitenta e sete vidas perdidas até as 19h do dia 30 de dezembro. E ainda há uma plateia descrente.
Em outros tempos, sem a pandemia, essas 887 vidas engrossavam o coro de boas-vindas do Ano-Novo. Entre um gole de champanhe e uma fatia de torta, estariam felicitando familiares, amigos e vizinhos. O aguardado aperto de mão ou abraço que muitos farão questão de distribuir na virada para 2021 foi possivelmente o mesmo caminho por onde o vírus entrou e levou embora pais e mães, irmãos e primos, tios e sobrinhos ao longo de 2020. A gotícula da saliva que escapou num encontro sem máscara, semelhante aos contatos que vão acontecer na noite desta quinta-feira (31), ajudou a formar esse imenso obituário.
Oficialmente, o 11 de março de 2020 marcou o início da pandemia na região, com o primeiro caso de covid-19 em Caxias. Não foi um começo avassalador, mas a prevenção fechou comércio, escolas e indústria nos dias subsequentes em diversas cidades. Exagero para uns, porém movimento essencial do ponto de vista científico. Com a flexibilização, o cenário começou a pender para uma tempestade.
Os boletins do coronavírus chegavam num dia com 10 casos, no outro com 30, até a primeira morte na Serra, em 15 de abril. O caso de Etelvino Mezzomo, 64 anos, morador de Serafina Corrêa, provocou certo alvoroço entre as autoridades e equipes médicas. Máscara, álcool gel, mãos limpas com água e sabão e distanciamento são regras salvadoras, mas nem sempre atendidas. Difícil entender porque muitos se acham imbatíveis, o que talvez explique a primeira onda de mortes e hospitalizações entre julho e setembro e a impensável letalidade no dezembro que todos acreditavam que seria o mês da tranquilidade.
O que se viu em 2020 foi um vírus soberano em 296 dias, enfrentado com esforço de guerra por uma camada incansável da população. A morte, infelizmente, é inexorável. Pacientes de idade avançada ou portadores de outras doenças foram os primeiros a tombar. A morte também é voraz. Em julho, o vírus matou pai, mãe e dois filhos em São José dos Ausentes. Em setembro, levou 11 idosos de uma casa lar de Gramado e repetiria massacre parecido em outro asilo em Caxias do Sul.
A covid-19 trouxe tons e comportamentos incomuns no luto. Foi em abril que o primeiro túmulo da era pandêmica foi lacrado em Caxias. Homens paramentados de branco da cabeça aos pés passaram a ser presença frequente nos corredores dos cemitérios, carregando caixões que nunca puderam ser abertos para a despedida. Em maio, outras três cerimônias fúnebres e o que se seguiu foi uma leva crescente de sepulturas sendo abertas e fechadas pela covid-19 em quantidade cada vez maior. Oitenta e cinco delas estão no Cemitério Público Municipal. Pouco mais de duas centenas foram distribuídas em outros cemitérios. Outras cinco centenas de pessoas estão enterradas em diversos sepulturas da região.
— É impactante ver famílias sem poder se despedir ou acompanhar. É um enterro muito triste. Se as pessoas pudessem ver como é isso, mudariam de opinião, fariam diferente — lamenta o administrador dos cemitérios públicos de Caxias, Carlos Dorvalino Rabello, testemunha do cortejo silencioso que se forma toda semana.
A indiferença percebida por Carlos talvez reflita a percepção de que não existe dor quando o corte é na carne de outros. Mas é um soco no estômago em quem teve um familiar morto em decorrência do vírus ver tanta gente aglomerada sem máscara na ruas ou em festas clandestinas. Daniel Veloso, 35 anos, perdeu o pai Victor Manuel Veloso Mendez, 64, em junho, vitimado pela covid. O pai não acreditava em isolamento social, mas demonstrou arrependimento após contrair o vírus e se ver na triste situação. Victor lutou pela vida.
— Me sinto desrespeitado quando vejo pessoas estimadas, parentes meus inclusive, amigos, promovendo aglomeração, festinha, rolezinho, baladinha secreta. As pessoas colocam a diversão em primeiro plano, mas não lembram que essa atitude pode ter consequência e a consequência é a morte — desabafa o profissional da área da informática.
Jussara Mezzomo, 60, esposa de Etelvino, a primeira vítima da pandemia, exemplifica esse momento delicado e dolorido.
— Está muito difícil em aceitar a maneira como foi a perda do Etelvino. Hoje me questiono muito. Todos nós vamos morrer, mas não poder ver o corpo, não se despedir... é isso que foi muito impactante. E o tempo nos cobra esta situação. É tão grave que as pessoas não se dão conta que estamos de mãos atadas por se tratar de um vírus e temos que cumprir as exigências sanitárias. Me pergunto: ele estava no caixão? Optei por cremar. Devia deixar enterrar sem cremação? Perguntas sem resposta. Um grande vazio.
A covid-19 trouxe à tona a lógica matemática, que vem sendo interpretada de variadas formas. Para muitos, 887 mortes para uma população estimada de 1.373.714 pessoas distribuídas em 65 cidades do Nordeste do Rio Grande do Sul estaria dentro de uma margem esperada — nove municípios não tiveram óbitos. Por outra ótica, qualquer vida conta e a tragédia supera em muito o total de assassinatos e acidentes fatais de trânsito registrados juntos no mesmo período. É número que infla ainda mais a taxa de mortalidade em geral na Serra, pois as 887 vidas perdidas se somam aos óbitos por câncer, por doenças coronárias, etc.
A matemática dá uma dimensão da abrangência do vírus assassino. Pelos dados oficiais, uma em cada 20 pessoas contraiu covid-19 nas 65 cidades da região — pesquisas indicam que os contaminados representam uma quantidade quatro vezes maior. Entre os casos positivos, um em cada 76 pacientes não resistiu às complicações.
Algumas cidades emergem como a mais atingidas. Proporcionalmente, a pequena Montauri teve a maior taxa de mortalidade para cada mil habitantes em toda a região. Como tem 1.441 moradores, os quatros óbitos na pandemia representam 2,7 casos para cada mil pessoas. Caxias do Sul, que lidera pela quantidade absurda de 309 mortes, teve uma taxa de 0,59. Contudo, Montauri não viu o sistema de saúde às portas do colapso como Caxias.
— Acredito que só não teve mais mortes em Montauri porque todos os tratamentos começaram logo no início. Dos 156 casos que tivemos, uns 40 não fizeram tratamento, os demais sim. Dez foram para hospitais e quatro morreram — conta a enfermeira Cleomaritane Gabrielli, integrante da comissão local de prevenção à covid-19.
O maior assombro vivenciado pelos habitantes de Montauri envolve os contaminados que esconderam a própria doença. Os serviços de saúde descobriram que diversas pessoas pegaram o vírus, mas seguiram trabalhando e em contato com outras pessoas.
— Então, se temos 156 casos confirmados, acredito que a cidade teve o dobro disso de casos ativos. Em 17 anos como enfermeira aqui, esse foi o pior ano. A equipe ficou arrasada, eu tinha que segurar as pontas. Não quero mais passar por isso. Se vier uma segunda onda, não sei o que fazer — diz Cleomaritane.
Na crise sanitária, os montaurienses não ganharam o mesmo holofote que a turística Bento Gonçalves. Com 141 mortes, a Capital do Vinho alcançou uma taxa de 1,15 vida perdida para cada 1 mil habitantes e foi cenário de desfechos até então inusitados, caso da primeira adolescente e do primeiro bebê vítimas, mas também por estar à frente de Caxias em número superior de mortes na contagem proporcional.
— É um sentimento de pesar constante, pesado, ruim. Mas parte da população tende a baixar a guarda. Tudo o que foi feito em Bento, foi de forma bem articulada, se investiu muito na ampliação de leitos de UTI, de leitos clínicos, respiradores. Mas não somos donos do comportamento do cidadão — avalia o prefeito de Bento Gonçalves, Guilherme Pasin, que encerra a gestão nesta quinta-feira, dia 31.
Márcia Ribeiro, coordenadora de enfermagem do Centro de Terapia Intensiva do Hospital Virvi Ramos, resume por que jamais será normal a vida se esvair quando é possível prevenir. Por ela, passaram pacientes vitoriosos e outros que partiram. A sensação de ver a morte no dia a dia é bem diferente do que imagina a grande população, que só conhece esse tipo de tristeza pelo noticiário.
— É um momento que a gente faz muitas reflexões aqui dentro do hospital, nas nossas famílias, com nossos amigos. Tem muitos momentos difíceis, mas também momentos de alegria em que a gente consegue sim levar o amor de alguém de volta para a sua casa. A gente também tem que apoiar a família, conversar, dar uma mensagem, mostrar com muito sentimento porque a gente fez tudo que deu, mas não foi possível.
Dois mil e vinte é o ano que só vai acabar quando a vacina chegar. Até lá, para cada descrição superficial sobre uma vítima da covid-19 nos boletins oficiais, recorde que há um nome e uma história. Deram adeus professoras e professores, empresárias e empresários, comerciantes, amantes da boa música e de um bom livro, cozinheiras ou cozinheiros de mão cheia, gente brincalhona, gente solitária, gente de sonhos...