A Serra tem andado na contramão do restante do Rio Grande do Sul (e do Brasil) com relação ao número de mortes no trânsito. Se o Estado comemora uma retração de 4,7% no percentual de vidas perdidas de 2019 para 2018, a região contabiliza um crescimento de pelo menos 12% neste mesmo período, conforme dados oficiais divulgados pelo Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS) durante esta semana. Desde 2015 não eram registradas tantas mortes em rodovias estaduais, federais e municipais nas 64 cidades serranas. No total, 232 pessoas (das 1.591 em todo o Estado) perderam a vida em rodovias da Serra.
Se for levada em consideração a contagem feita pelo Vidas Perdidas no Trânsito, no site do Pioneiro, o percentual pula de 12% para 20,4%. Já se forem contabilizados apenas os 31 municípios integrantes do Conselho Regional de Desenvolvimento da Serra (Corede-Serra), esse percentual é ainda mais alarmante: 27,8%. Em comparação com 2015, quando houve menos vítimas (197) nos últimos 13 anos, o aumento é de 17,76% em 2019, conforme o levantamento do Detran.
Mesmo com essa ascensão do ano passado, o índice ainda é inferior a 2012, quando morreram 309 pessoas nas estradas da região.
Caxias do Sul, por ter maior frota, obviamente puxa para cima a fila de vítimas na região. Mesmo assim, os números da cidade assombram (e muito) o próprio Detran. Tanto que, conforme o diretor-geral adjunto do órgão, Marcelo Soletti, ações específicas estão sendo estudadas para entender o que tem ocorrido na maior cidade da Serra, que só em 2019 contabilizou 60 mortos — a Capital, Porto Alegre, com 1,5 milhão de habitantes, teve 77. Desde 2011, quando 61 pessoas foram vítimas da violência no trânsito, a cidade serrana não apresentava um número tão expressivo. Para se ter uma ideia, em 2018, foram apenas 33 mortes no trânsito em Caxias, quase a metade do ano passado.
— O Brasil inteiro vem de uma tendência de redução e as cidades estão cumprindo isso, com trabalhos pontuais para evitar esse aumento no número de mortes. O índice de Caxias é assustador. Estamos avaliando esses números e buscando todas as informações para que possamos realizar um trabalho pontual na cidade — destaca Soletti.
Ainda este ano, o Detran pretende instalar em Caxias e em outros 17 municípios considerados os mais violentos do Estado, a Escola Pública de Trânsito, apresentada em setembro de 2019 e que será voltada para, além de condutores, servidores, credenciados e terceirizados do órgão, estudantes, ciclistas e pedestres. A ideia é ministrar cursos temáticos sobre trânsito.
— Não temos dúvidas que o álcool ainda segue como o responsável pela maioria dos acidentes com morte no trânsito. Estamos finalizando os dados para colocar a escola em prática. E ela será no sentido de escola mesmo, para apresentar as principais causas e ensinar aos gestores como fazer a prevenção. Caxias será uma dessas cidades com a qual vamos trabalhar mais pontualmente as causas dos acidentes — conta Soletti.
Leis mais rígidas contribuem para redução no RS
No índice geral do Rio Grande do Sul, o levantamento do Detran também aponta para uma queda de 10% no número de acidentes fatais em vias estaduais de 2018 para 2019. No entanto, houve um aumento de 1,5% nas federais. Esse acréscimo, mesmo que pequeno, pode ter relação com os quatro meses em que as rodovias ficaram sem o uso de radares móveis por determinação do governo federal. O controle foi retomado no fim do ano após determinação judicial.
Marcelo Soletti destaca que alguns pontos foram cruciais para a diminuição no número de mortes. A Lei Seca, que entrou em vigor em 1997 mas só em 2008 adotou o “tolerância zero” para a quantidade de álcool no organismo, é um deles. Os valores mais salgados nas multas para quem for pego dirigindo sob efeito de álcool ou substâncias psicoativas (R$ 293,47 vezes 10, totalizando R$ 2.934,70) também é um dos motivos apontados por essa redução em nível estadual. O sistema de segurança e a tecnologia nos automóveis mais modernos também ajuda na hora das colisões. No entanto...
— Temos os prós e os contras. Você tem um carro mais moderno, tecnológico e tem a tendência de pisar mais. O Balada Segura, que começou em 2011, também tem ajudado a diminuir esse índice, além do transporte por aplicativos, o uso do cinto de segurança, que já é quase automático para a maioria e a própria conscientização das pessoas — cita Soletti.
Uma dor que nunca passa
Dois meses após o acidente de trânsito que vitimou Luis Henrique Barbosa, 24 anos, no dia 5 de janeiro de 2020, familiares e amigos dizem sentir cada vez mais profunda a dor causada pela falta do jovem que residia e trabalhava no bairro Fátima. Ele é uma das 21 pessoas que perderam a vida em estradas da Serra gaúcha neste ano.
Após comemorar o aniversário de 50 anos da mãe, Rosimeri Barbosa, em Caxias do Sul, na noite de sábado, dia 4 de janeiro, ele e a namorada, Caroline Gomes de Azevedo, aproveitaram a tarde de domingo para ir até Vacaria, em um passeio com a motocicleta Honda XRE 300 que ele tinha adquirido há mais ou menos um ano. O acidente registrado por volta das 16h ocorreu a 300 metros de distância da casa do irmão que Barbosa estava indo visitar, no bairro São João.
O caso ainda corre na Justiça e conforme boletim da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que atendeu à ocorrência no km 41 da BR-116, a moto acabou atingindo a Hilux com placas de Vacaria, após uma manobra classificada pelo documento como um retorno irregular.
— É um sentimento que não dá nem pra explicar. Ele não teve nem chance de pensar, o que deu pra fazer, que foi tentar desviar, ele fez. A falta é muito grande. Hoje é com a gente, amanhã pode ser com outra família e assim por diante — relata Thais Pereira, 29, irmã de Barbosa.
A família diz ainda manter contato com Caroline, namorada dele que sobreviveu à colisão, porém ainda se recupera da amputação de uma das pernas realizada em decorrência do acidente. O casal estava junto há cerca de nove meses e morava junto há três. Mesmo assim Barbosa ainda almoçava e jantava todos os dias na casa do pai, Luiz Edgar Barbosa, no mesmo bairro.
— Não está sendo fácil, ele estava todos os dias lá em casa, parece que ele vai chegar a qualquer momento — afirma o pai.
A mesma sensação tem, quase que diariamente, Jorge Antônio Carvalho, o Toni, proprietário da autoelétrica onde Barbosa trabalhava. Ele conta que, todas as manhãs, um motociclista passa no mesmo horário com o mesmo som que a moto de seu braço-direito fazia ao chegar no trabalho. Com a aposentadoria encaminhada, Toni diz que tinha a intenção de deixar seu negócio para o jovem que foi seu aprendiz nos últimos 13 anos.
— A morte dele me quebrou. Eu tinha ele como um filho, apoiava ele, pagava cursos e todos os clientes gostavam dele, até agora muitos ainda não sabem quando vêm aqui — conta o proprietário, lembrando do caso recente de um cliente que chegou a sair da oficina para chorar quando foi informado da morte de Guigão.
— Tudo que eu sei ele sabia. Eu vou me aposentar agora e não sei como vai ser, estou pensando até em encerrar de vez aqui — avalia Toni.
Vestindo a camiseta com o rosto do irmão, Aline Pereira, 29, ao lado da filha, Maria Eduarda Panisson, 10, uma das cinco sobrinhas de Guigão, diz parecer cada vez maior a lacuna ao longo dos últimos dois meses.
— O primeiro dia acho que não é tão difícil quanto esses outros dias que vão passando — relata.
Segundo ela, 100 peças da camiseta com a estampa de Guigão foram feitas para homenagear e também não deixar que o acidente seja esquecido. O velório do jovem, que ocorreu em Caxias do Sul e em Vacaria, atraiu mais de mil pessoas, prova do quanto o rapaz era querido por quem conhecia. Em Caxias, mais de 200 motociclistas realizaram uma carreata em nome do amigo.
— Eu sempre dizia pra ele e digo pra todo mundo, é preciso se cuidar e, acima de tudo, cuidar dos outros na estrada. Agora queremos que a Justiça seja feita porque o guri, infelizmente, não volta mais — conclui Toni.