O marido matou o animal de estimação da família e a esposa procurou a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) para denunciá-lo pelo ato de selvageria. Num primeiro momento, parecia um equívoco escolher a delegacia como canal para resolver esse tipo de caso. Estudantes de Psicologia estavam atentos e captaram a mensagem carregada de anos de convivência abusiva, algo que a própria mulher omitia para si.
A escuta qualificada ocorreu numa sala entre o balcão de atendimento e o setor de registro de ocorrências da Deam. É ali que integrantes de um projeto-piloto da Vara de Violência Doméstica tentam derrubar uma barreira forjada por medo, ansiedade e sutilezas que acompanham a rotina de mulheres ameaçadas, perseguidas e agredidas por maridos, namorados, filhos e homens que não aceitam o fim do relacionamento.
O trabalho inédito na Polícia Civil caxiense começou na segunda-feira, dia 2 de setembro, e seguirá até o final de dezembro. Estagiários do Projeto Hora, desenvolvido no Fórum, se revezam na Deam para entrevistar mulheres antes do registro da ocorrência. A conversa dura 30, 40 minutos. A finalidade é organizar a cabeça de vítimas que muitas vezes não se veem como vítimas. O resultado a ser colhido nos próximos meses embasará um possível argumento para mudanças nos padrões de atendimento e que parecem não ser suficientes para frear tanta violência. Em média, nove denúncias de violência doméstica chegam à Deam diariamente. Nem sempre as mulheres rompem o ciclo e permanecem ao lado do agressor.
Os entrevistadores sabem que a mulher acolhida na sala reservada tem corpo e alma machucados. É alguém que sofreu nas mãos do amor de uma vida, que entra na delegacia aos prantos, tem dificuldades de se fazer ouvir e logo, a confusão de sentimentos é grande, complexa.
Num formulário de quatro páginas, usado como instrumento da entrevista psicológica na Deam, há uma pergunta essencial para entender até que ponto a vítima está disposta a ir para dar o basta e por que ela decidiu fazer a denúncia. A vítima pode apontar se o objetivo era dar um susto no marido, ver se ele melhora o comportamento, se está atrás de vingança, se quer justiça, se está com raiva, se busca a separação, se tem medo ou se busca ajuda.
— Estamos ali para tentar ajudar a organizar o emocional dela, que elas digam o que querem do poder público, pois estão registrando um crime — ressalta a psicóloga judiciária e coordenadora do projeto, Maria Elaene Tubino.
Embora a atividade tenha começado há pouco tempo, as entrevistas até o momento indicam um trabalho intenso. Há choro, desabafos e muita apreensão, escuta que não seria assimilada da mesma forma por um agente da Polícia Civil.
— Se proporciona esse acolhimento e buscamos identificar qual é o risco que ela corre, se ela consegue identificar a violência sofrida — aponta uma das entrevistadoras, a estudante de Psicologia Cristina Andrade Provin, estagiária do Projeto Hora.
Das histórias rumo à reconstrução, Cristina cita uma estudante universitária. Semana passada, a jovem passou pelo atendimento e, antes de ir embora, perguntou se a estagiária atendia de forma particular. Da entrevista, saem mulheres um pouco mais tranquilas, menos ansiosas e mais convictas sobre o futuro que desejam.
"O que elas querem do poder público?"
Há um caminho por onde a vítima da violência doméstica perde o contato com a rede de proteção após o registro da ocorrência. Essa é uma falha que pode ser corrigida com o suporte da psicologia. Carla Zanetti, delegada titular da Deam, atribui a descontinuidade do andamento das denúncias à falta de convicção das mulheres sobre o mal que elas sofrem. Ao registrar ocorrência, porém, a mulher não tem noção que está denunciando um crime. É comum uma vítima usar a polícia e o sistema da Justiça como um artifício para amedrontar o agressor. No primeiro sinal de calmaria, perdoa-se tudo, até um próximo ato brutal.
Há vítimas contumazes. Uma mãe atendida no projeto-piloto prestou queixas contra o marido diversas vezes, mas a raiva passava e o abuso ia ficando para trás, sem avanços na Justiça. Agora, ela está disposta a separar de vez.
— Não queremos que elas se percam nesse caminho, entre a saída da delegacia, a ida ao Fórum e ao Centro de Referência, por isso temos esse trabalho aqui. Posso conversar como policial, mas é diferente a abordagem da psicologia — pondera Carla.
A delegada cita como exemplo os atendimentos prestados no Centro de Referência, em que vítimas se conscientizaram sobre a importância de romper definitivamente com o homem que humilha, xinga, censura e agride. Não é uma decisão simples para elas, mas tampouco o projeto-piloto pretende ser um canal de estímulo. Antes de tudo, a ideia é servir como ponto de amparo para que as vítimas usem menos da emoção e mais da racionalidade.
O PROJETO-PILOTO
:: Até o final de dezembro, estagiários e voluntários de Psicologia que atuam no Projeto Hora da Vara de Violência Doméstica estarão Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) para entrevistar um percentual não definido de vítimas de violência doméstica.
:: O atendimento do projeto-piloto será somente à tarde, de segunda a sexta, das 13h30min às 18h, horário de funcionamento da DP. A delegacia segue com o serviço normal na parte da manhã, das 8h30min às 12h.
:: A entrevista é realizada numa sala reservada, sempre antes do registro da ocorrência. A equipe preencherá um formulário de avaliação de risco sobre o comportamento do agressor e que tipo de violência a vítima sofre, entre outros. A conversa tem a intenção de diminuir a ansiedade da vítima e ajudá-la a organizar os sentimentos para que tome a decisão correta.
:: Após, a vítima é liberada para fazer o registro da denúncia. Com o resultado obtido no final do ano, a intenção é apontar como o suporte é importante e sugerir mudanças no atendimento.
:: A rede de proteção possui serviço público de orientação psicológica no Centro de Referência da Mulher e na Vara de Violência Doméstica, no Fórum. Em média, após o registro da ocorrência e dependendo do caso, a vítima é chamada para uma entrevista de avaliação de risco no Fórum em até 10-15 dias.
Denúncias cresceram 15% neste ano
O número menor de feminicídios neste ano (duas mortes) poderia indicar uma redução da violência contra as mulheres, mas dados da Deam mostram acréscimo nos casos de agressões físicas, ameaças e perturbação da tranquilidade. No ano passado, a quantidade média de ocorrências no primeiro semestre era de 239 casos por mês — houve cinco feminicídios. Em 2019, o número subiu para 274 casos por mês, crescimento de 15%. As ameaças e as lesões corporais são os crimes mais frequentes.
— É crime de ameaça, mas por trás vem 30 anos de violência — assinala a delegada Carla.
O Rio Grande do Sul registrou elevação de 40,96% nos casos de feminicídio em 2018 se comparado ao mesmo período do ano anterior. No ano passado, foram 117 feminicídios, 34 a mais do que em 2017, segundo dados do 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados na terça-feira, dia 10 de setembro.
O Estado segue na terceira colocação entre as unidades da federação, ficando atrás apenas de Minas Gerais (156) e São Paulo (136).
BUSQUE AJUDA
:: Coordenadoria da Mulher: (54) 3218-6026
:: Centro de Referência para a Mulher: (54) 3218-6112
:: Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (DEAM): (54) 3220-9280
:: Patrulha Maria da Penha: (54) 98423-2154
:: Central de Atendimento à Mulher: telefone 180
:: Casa de apoio Viva Raquel: abrigo destinado a atender e acolher mulheres em situação de violência doméstica, com risco de morte, juntamente a seus filhos. Por segurança, o endereço da casa é sigiloso.
Leia também
Transexual é baleada durante assalto em Caxias
Jovem é agredida por ex-marido, em Flores da Cunha, e ameaçada com faca ao terminar relacionamento
VÍDEO: imagens mostram correria durante e após assalto que acabou em morte de mulher em Caxias do Sul