Aos 24 anos, Maria era uma jovem cheia de sonhos. Um deles era se apaixonar e ter uma família. Filha de empresário, tinha uma vida estruturada e fazia parte da classe média alta da sociedade caxiense. Formada em Administração, ajudava o pai a tocar a empresa, tinha seu próprio carro e apartamento.
Aos finais de semana curtia as noites se divertindo com os amigos. Em uma das noites do ano de 2010, a paixão que tanto sonhava se tornou realidade. No palco de uma casa noturna, o integrante de uma banda a seduziu com sua música. Mal sabia que essa paixão se tornaria um pesadelo.
Maria faz parte das estatísticas de mulheres agredidas por seus maridos em Caxias do Sul. São números cada vez mais impressionantes e que crescem a cada ano.
No primeiro semestre deste ano, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM) registrou mais de 1,6 mil casos, 14% a mais que o mesmo período de 2018. A média é de 274 por mês e nove por dia. Este cenário, no entanto, não inclui as que sofrem caladas. Dados da Secretaria da Segurança Pública do Estado apontam que cerca de 70% não registram Boletim de Ocorrência (BO).
Cega pela paixão
O pesadelo de Maria começou poucos meses depois do início do relacionamento quando resolveram morar juntos – na casa de Maria. O músico romântico que encantava o público com suas melodias, se tornou em um homem ciumento e violento. Começou controlando as mensagens no celular e afastando seus amigos.
As primeiras marcas roxas no corpo surgiram com menos de um ano de namoro. Ela ensaiou uma separação, mas a paixão falou mais alto e logo permitiu que voltasse para casa.
— Ele prometeu que iria mudar. Estava cega pela paixão — lembra.
Trinta dias depois as cenas de violência recomeçaram e Maria entrou no processo da depressão. Engordou 24 quilos e um motivo a mais para o músico humilhá-la.
— Teve um dia que ele quase me sufocou!
Deprimida, foi parar numa clínica psiquiátrica por um período de 45 dias. Foi lá que descobriu a primeira gravidez. O sonho de ter uma família estava se concretizando, mas queria o pai de seu filho presente. Perdoou mais uma vez e o músico retornou para casa de Maria. A gravidez foi de idas e vindas.
Quando a bebê tinha 23 dias, Maria foi duramente espancada. Com a ajuda de uma vizinha conseguiu chamar a polícia e acabou sendo humilhada pelo policial. “Me chamou por causa disso. Vai ver mereceu”. Registrou o BO quatro dias depois.
O sonho de ter uma família persistia. Quatro meses depois, ele implorou para voltar. Aceitou, novamente. Neste dia, os pais e irmãos “lavaram suas mãos” e deixaram de apoiá-la. Perdeu o emprego na empresa do pai.
"Passei a segunda gravidez apanhando"
Maria perdeu a conta de quantas vezes perdoou o parceiro e permitiu que voltasse para casa. Em um dos retornos , o casal viveu uma fase aparentemente tranquila. Sem agressões.
— Acreditei na mudança. Tinha uma filha.Tava feliz...
Estava errada. As surras voltaram meses depois. Desta vez, sem provas físicas.
— Ele agarrava meus cabelos e me arrastava pelo apartamento. Fiquei mais de mês sem conseguir pentear.
Ignorada pela família e amigos, não tinha onde buscar ajuda. Passou a apanhar calada, quieta, sem contar para ninguém. Tinha medo e vergonha. Em 2014, a descoberta da segunda gravidez e com ela um novo pesadelo.
— Queria que eu abortasse. Resisti, mas passei toda a gravidez apanhando. Acabei me acostumando com os chutes e socos. Virou rotina. Já não reclamava.
Foi neste cenário que o segundo filho nasceu. Não importavam as surras. Maria tinha uma família. Infeliz, mas com o sonho realizado.
Saiba mais:
* A média mensal de denuncias em Caxias do Sul é de 274.
* O crimes mais comuns são agressões físicas e verbais, lesão corporal e ameaças de morte.
* Este ano, no entanto, já foram registrados dois feminicídios (consumados) em Caxias do Sul. Em 2018 foram 17 (consumados e tentados).
* No Estado, foram registrados mais de 30 mil casos de violência no ano de 2018, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do RS.
* Para a delegada da DEAM de Caxias, Carla Zanetti, o aumento no número de registros se deve às campanhas desenvolvidas pelos governos, que incentivam às mulheres a denunciarem.
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