Abrigados em barracos de chão batido improvisados com chapas de compensado e lonas esburacadas, adultos e crianças indígenas passam dias e noites em condições extremamente precárias em Bento Gonçalves. Para ter um pouco mais de qualidade de vida, os caingangues que vivem em uma área no bairro São Roque reivindicam que o terreno seja destinado à formação de uma aldeia semelhante à existente no município vizinho de Farroupilha. O caso deve ser mediado pelo Ministério Público Federal (MPF) que foi procurado pelas lideranças locais no final de agosto.
O desejo dos indígenas, porém, esbarra na destinação da área, que seria usada para a construção de uma casa de passagem para recebê-los esporadicamente e não para a formação de uma aldeia com residências fixas. O problema é que, até o momento, nem obra dessa casa de passagem é certa. O termo de cessão de uso por parte do município, dono do imóvel, ainda não foi assinado e, diante do impasse, talvez nem seja.
É que o terreno cedido para ser temporário virou permanente, contrariando a proposta inicial. Há 18 famílias caingangues, num total de 60 pessoas, morando no local. Segundo o cacique Nelinho Paulo, 40 anos, o grupo se instalou há cerca de dois anos.
– Para sustentarmos nossos filhos e viver, aqui está bom. Fomos no Ministério Público Federal para declarar que o pessoal já decidiu ficar aqui em definitivo e que já colocaram cacique. Tem uns que até já transferiram os títulos e são eleitores de Bento – relatou Isaías da Silva, 36, outra liderança do grupo.
A Secretaria Municipal de Habitação e Assistência Social explica que são feitos levantamentos no lugar a cada 90 dias e que o acampamento ganhou volume nos últimos meses visando uma possível fixação das famílias. A área de quase 3 mil metros quadrados foi destinada à construção de uma estrutura para abrigar os indígenas, que vinham para a cidade em períodos como Natal e Páscoa para vender artesanato e acabavam perambulando por viadutos e na estação rodoviária por não terem onde ficar.
Conforme a secretária Milena Bassani, a negociação começou em 2013, com a participação da Fundação Nacional do Índio (Funai), que ficaria responsável pela construção da casa de passagem, e o MPF.
– O município encontrou uma área de terras, chamou a Funai e disse: "nos disponibilizamos a fazer a cessão de uso dessa terra para servir como área de passagem para todos os indígenas que vierem para a região terem um lugar seguro para ficar" – explicou Milena.
Naquele ano e no seguinte, os caingangues não teriam ficado no lugar. A estada por períodos determinados teria passado a acontecer a partir de 2015. E teria deixado de ocorrer no ano passado, com a fixação dos grupos.
Ocorre que o tempo foi passando e o termo de cessão de uso da área não foi finalizado. Portanto, a cedência não existe oficialmente. Em função das últimas movimentações por parte da comunidade indígena, a prefeitura diz que só volta a negociar a cedência se houver a desocupação.
O QUE DIZEM
:: O MPF informou, por meio de nota, que "recebeu as reivindicações dos indígenas", que elas "são relativas à definição de um espaço territorial definitivo e transporte escolar" e que "os fatos estão sendo apurados" em um procedimento preparatório, ou seja, fase preliminar de investigação que pode resultar na abertura de um inquérito ou não.
:: O escritório regional da Funai disse que não recebeu demanda da tribo instalada em Bento Gonçalves sobre a fixação das famílias na cidade. Reafirmou que o local é destinado a uma casa de passagem e que a instituição só pode fazer alguma melhoria de infraestrutura no local depois da cedência da área por parte do município.
:: A Secretaria de Habitação e Assistência Social afirma que ou a área volta a ser usada como local de passagem para os indígenas, tendo como consequência, a formalização da cessão de uso, ou vai pedir a desocupação do terreno. A prefeitura alega ainda que o local é impróprio para formação de aldeia e deveria ser usado em sistema de rotatividade, abrigando, no máximo, oito famílias ao mesmo tempo, por período determinado.
Acampamento é improvisado e impróprio
As famílias caingangues que vivem no bairro São Roque vieram dos municípios de Charrua, no noroeste gaúcho, Tenente Portela, no Norte, Cacique Doble e Caseiros, no Nordeste. Por enquanto, os indígenas recebem doações como colchões, agasalhos e alimentação da comunidade e da prefeitura. As famílias são atendidas na rede municipal de saúde, enquanto as crianças frequentam escolas da rede estadual e municipal. Para chegarem às salas de aula, porém, precisam se deslocar a pé. Os homens trabalham como auxiliares nas plantações da região, principalmente, de uva, e as mulheres com fabricação e comércio de artesanato.
Dos requisitos mínimos de sobrevivência, o acampamento tem água encanada e energia elétrica. Na tarde da última quinta-feira, quando o Pioneiro esteve no local, uma criança era banhada na água fria em um tanque. A estrutura que parece mais firme é uma feita com taquaras, que eles dizem ser uma igreja evangélica, localizada na entrada do terreno cheio de altos e baixos, em meio aos eucaliptos.
– É difícil, mas nós, como índios, sempre damos um jeito para sobreviver. Nossa necessidade mesmo é que esse espaço seja nosso. A gente já está acostumado e queremos esse lugar. Somos índios, mas temos direito – declarou Zoraide Claudino Sales, 46, que vive em uma das tendas mais organizadas do lugar com o companheiro Miqueas da Silva, 31, e os filhos Graziela Carvalho, 16, Flávio Carvalho, 22, e Gilsomar Carvalho, 18.
– Por isso que estamos pedindo ajuda do Ministério Público, para convocar os órgãos para ver o que podem fazer por nós, junto com a prefeitura. Casa boa não tem, é só debaixo da lona. Não temos o que fazer, é passar frio – comentou Isaías.
A prefeitura argumenta que o lugar onde estudam as crianças é o Colégio Estadual Dona Isabel, que fica no bairro Universitário, distante 1,2 quilômetro do acampamento caingangue, portanto, não exige transporte escolar. Na área da saúde, os indígenas são atendidos na rede pública e no Centro de Referência de Assistência Social (Cras).
Em Farroupilha, única aldeia da Serra recebe novas casas
É uma aldeia semelhante à dos caingangues, perto do balneário Santa Rita, em Farroupilha, que os indígenas de Bento Gonçalves pleiteiam. São 15 casas e uma escola de madeira, dispostas em forma circular no terreno, e uma estrutura de alvenaria, ao centro, com três banheiros comunitários (um para homens, um para mulheres e um para crianças e dois chuveiros). Desde o ano passado, novas casas estão sendo erguidas pela prefeitura. Cinco estão em fase final e uma ainda na altura das paredes. Paredes que, aliás, tem uma base de cerca de um metro de tijolos. Elas também têm banheiros próprios de alvenaria. É que, como a área onde estão as casas atuais é alagadiça, algumas das residências estavam com parte da madeira apodrecida. Essas famílias mudarão para as novas moradias.
Na parte central do terreno também está sendo construída uma casa de saúde. O local não funcionará como um posto. Será um lugar para educação em saúde e coleta de materiais para exames. A ideia é que a obra, que custou R$ 43 mil e foi licitada pelo município, fique pronta até o final do ano.
Das condições de sobrevivência no local, a cacique Silvana Kréntánh Antonio, 41 anos, lamenta apenas a falta de matéria prima – cipó e taquara – para a confecção das peças de artesanato.
– A gente tem bastante dificuldade de achar material para o artesanato. Essa mata é de reflorestamento. O que tinha de cipó, não tem mais. Daí, o pessoal sai para trabalhar como diarista no parreiral. Agora, estão na poda – comentou a líder da tribo.
Além do trabalho, alguns núcleos familiares (a cacique não soube dizer quantos) recebem Bolsa Família do governo federal. O valor difere em função do número de filhos. Também recebem cestas básicas da Funai e doações da comunidade.
No local moram 17 famílias. Outras três vivem em uma área no 4º distrito do município, mas todas os 81 indígenas – são 24 crianças e 57 adultos – fazem parte da mesma aldeia. As crianças até o 5º ano estudam na escola indígena, depois, seguem para escolas do município. O transporte busca e entrega os estudantes na aldeia. Já os ônibus urbanos passam perto da aldeia três vezes ao dia.
A aldeia abriga ainda, temporariamente, muitos indígenas que vêm à cidade na época da colheita da uva.