Andreia Guimarães de Lima, 25 anos, aguardava na fila, atrás de outras 15 pessoas, o acesso ao prédio do Cadastro Único, no centro de Caxias do Sul. Eram quase 13h, o sol queimava. Nos seus braços, o filho Enzo, de um mês, dormia profundamente. No chão, agarrando-se à blusa da mãe, Iago, de dois anos, chorava. Na frente de Andreia, Eliane Rodrigues dos Santos, 34, também esperava a abertura do órgão. A cena, testemunhada pelo Pioneiro nesta sexta-feira, repete-se todos os dias, no início da manhã e no começo da tarde, quando pessoas se aglomeram para conseguir fichas de atendimento que podem significar o acesso a algum benefício governamental que as ajude a fechar as contas do mês ou até garantir que não falte comida na mesa.
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Andreia conta que, além de Enzo e Iago, tem mais dois filhos – Kauany, cinco, que estava na casa da mãe, e Erick, sete, na escola. A mãe busca recuperar os R$ 187 mensais que recebia do Programa Bolsa Família até dezembro do ano passado. Ela teve o valor bloqueado pelo governo federal por receber outro auxílio para Erick, que têm deficiência física, no valor de um salário mínimo (R$ 937).
Já Eliane, mãe solteira, teve o benefício bloqueado há três meses, quando conseguiu um emprego. No entanto, há uma semana, ela foi demitida, ainda no período de experiência. Agora, espera recuperar os R$ 175 mensais que recebia para conseguir pagar a van que transporta a filha Ana Paula, de oito anos, para a escola.
Casos como o de Andreia e Eliane são cada vez mais comuns em Caxias do Sul. A cidade chegou a ter 8.379 famílias atendidas pelo Bolsa Família em outubro do ano passado. Hoje, 7.417 recebem o valor médio de R$ 137,87 por mês. São 962 famílias a menos e um contingente de beneficiados menor do que o de 2010.
O governo federal nega a diminuição. Segundo a coordenadora do Cadastro Único em Caxias do Sul, Eveline Bisol, a informação oficial é de que o número de benefícios varia por conta de auditorias. Os pagamentos para quem não atende aos critérios do programa seriam cortados e repassados a pessoas que estão na fila – o público-alvo do programa são famílias com renda per capita de até R$ 170.
A coordenadora relata que, em muitos casos, a pessoa perde o benefício por ter trabalhado por algum período sem informar ao Cadastro. No entanto, ela reconhece que os critérios do governo federal deixam espaço para dúvidas.
– Há casos em que a pessoa trabalhou três meses em 2016 e o Bolsa foi bloqueado agora, em maio ou junho, com a justificativa de que venceu o tempo do cadastro. Ou a “fraude” às vezes é um menor aprendiz, que conseguiu renda de meio salário mínimo. O critério é muito baixo. E o público tem a ilusão de que as pessoas recebem um valor enorme de Bolsa Família, o que não é verdade – afirma.
Oneide Pires Ribeiro, 25 anos, é mãe de Eduarda, sete anos, Natanael, três, e Natiele, um ano e quatro meses. Ela estava trabalhando como auxiliar de cozinha por um salário mínimo até a semana passada, quando foi demitida.
– Foi redução de pessoal – relata.
Mesmo ficando menos de três meses na função e sem ter direito ao seguro-desemprego, ela teve o benefício bloqueado. Oneide relata que contava com o valor para complementar a renda.
– Sempre faltou algo para eles (os filhos) pela metade do mês. Eu usava o bolsa para comprar alguma coisa, leite, ou um calçado que precisava.
As histórias no atendimento do Cadastro Único se repetem. Cátia Silva, 41, mãe de seis, não sabe porque seu benefício foi bloqueado. Ela diz que hoje consegue pagar as contas fazendo faxinas, mas o programa salvou sua vida em 2016.
– O mais difícil é ver as coisas faltar. Antes de eu receber chegou a faltar arroz, feijão, não tinha papel higiênico. Não gosto nem de lembrar.
A mãe espera que possa voltar ao cadastro e recuperar o benefício de R$ 280 que recebia, mas, no momento, a principal preocupação é encontrar emprego.
– Se precisar juntar pedra, eu vou. O importante é fazer alguma coisa.
Para Andreia e Eliane, que esperavam na fila, o resultado do atendimento na sexta-feira não foi animador. Andreia foi informada de que não pode acumular o benefício com o salario mínimo que recebe para sustentar os quatro filhos. Eliane voltou para casa sem respostas e terá de voltar à fila no mês que vem.
Crise muda o perfil dos necessitados
Em meio ao corte de 11,5% no tamanho do Bolsa Família desde outubro passado, não houve melhora na economia em Caxias do Sul: de outubro de 2016 até julho deste ano, por exemplo, Caxias perdeu 2.212 empregos formais, conforme dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do Ministério do Trabalho.
A piora nos indicadores sociais e os cortes no orçamento do setor aumentam a procura da população por entidades de assistência social. Um dos locais que percebe o aumento da demanda por auxílio é a Casa Madre Teresa, mantida pela Igreja Católica. Segundo a assistente social Silvana De Conto, a entidade tem atendido de 1,5 mil a 1,6 mil pessoas todo mês em busca de alimentos e remédios.
– Até o ano passado, apareciam sempre os mesmos. Agora, têm muitos casais jovens com filhos. Aumentaram muito os pedidos por comida em um ano – relata.
O desemprego mudou o perfil das pessoas que buscam ajuda, conforme a Heloísa Teles, diretora de Assistência Social Básica da Fundação de Assistência Social (FAS).
– O contexto atual tem trazido um público que tradicionalmente não ocupava esses serviços – destaca.
É o caso de Júlio Cesar Lemos, 19 anos e Vanusa de Souza, 18. Com o nascimento da filha Maria Luísa, hoje com um ano e um mês, eles decidiram deixar a casa dos pais para iniciar uma nova etapa da vida, no bairro Planalto. A situação econômica, porém, dificultou o sonho. Vanusa perdeu o emprego em fevereiro. Júlio, que era mecânico, na semana passada. Os dois correm para tentar voltar ao mercado de trabalho. Enquanto isso, porém, os programas governamentais são a alternativa.
– É diferente, né? – resume Vanusa, ao comentar a situação nova em que se encontram.
Os dois foram incluídos no Cadastro Único e esperam receber o Bolsa Família em outubro.
De acordo com a diretora de Assistência Social Básica da Fundação de Assistência Social (FAS), Heloísa Teles, a redução no programa federal acaba impactando também os serviços municipais:
– Temos diversas possibilidades de atendimento municipal, mas claro que tem impacto. Acabamos tendo de ofertar outras modalidades de inclusão e transferência de renda.
Heloísa informa que existe uma preocupação na FAS com a redução de benefícios do Bolsa Família, fato que já foi informado ao governo federal.
– Eles falam que não tem diminuição, mas estamos observando. Isso saiu como deliberação na Conferência Municipal de Assistência Social, temos feito essas solicitações ao governo federal e estadual, mas as informações não vêm – aponta.
Auditoria do programa não justifica cortes
Embora o governo federal justifique a perda de benefícios do Bolsa Família em razão de auditorias, a explicação não dá conta de esclarecer porque o número de atendidos não volta ao patamar do ano passado. Eveline Bisol, coordenadora do Cadastro Único em Caxias, acredita que o problema seja a falta de verbas.
– A gente tem mais famílias nessa faixa de renda (até R$ 175 mensais per capita), mas o governo federal não contempla. É uma questão orçamentária. Seria uma maneira de reduzir os benefícios passando a imagem de que estão tirando quem frauda o programa – aponta.
Hoje, Caxias do Sul poderia atender até 8,7 mil famílias pelo programa. Esse é o teto estabelecido por meio do Censo de 2010, que mapeou o número de pessoas em situação de pobreza no município. Sabe-se, porém, que esse número é maior. Dados do Cadastro Único mostram que Caxias do Sul tem 10.348 famílias na faixa de renda enquadrada pelo programa.
– Estamos fazendo a nossa parte, efetuando os cadastros, mas os valores não vêm. Além disso, eles (o governo) teriam de ter uma projeção, já faz sete anos do Censo. Hoje, temos 15.383 pessoas com renda de extrema pobreza, de até R$ 85 reais per capita – critica a coordenadora.