Viver é a arte de driblar e de domesticar, na medida do possível, os medos que nos assombram a tal ponto de fazê-los integrar nossa própria constituição psíquica. Passo a passo, vamos apaziguando alguns desses medos, em uma batalha diária que se inicia desde que saímos de dentro do conforto escuro, morno e silencioso da barriga de nossas mães. O primeiro medo é justamente este: o de enfrentar o mundo vindo à luz, daí o porquê daquele baita berreiro que abrimos já na chegada, de que nossas mães (e médicos e parteiras) tão bem recordam.
Mais tarde vêm o medo do escuro, de ficar sozinho, de perder os pais, do Bicho-Papão, do Sanguanel (isso aqui pelas subidas e descidas da Serra), do garoto que nos faz bullying na escola, de ser flagrado colando, de não fazer as lições de casa, de esquecer a tabuada, de rodar no final de ano, de não passar no vestibular, de não conseguir concluir o TCC, de rodar nos testes de direção, de se formar e não obter emprego, de ser demitido, de não poder pagar as contas, de ser rejeitado pelo amor de nossas vidas, de perder o capítulo final da novela e não conseguir nem assistir à reprise no sábado, de que o arroz queime, do aumento dos impostos, da violência urbana, do trânsito assassino, de ficar careca, de não ter como esconder as rugas, de que chova no final de semana na praia, de que nunca mais chova...
Além dos medos comuns e compartilhados por grande parte da humanidade, cultivamos também uma coleção de medos nossos, particulares, pessoais e intransferíveis, apesar de muitos deles serem também comungados por outros de nossa espécie. Eu, por exemplo, sou do time dos que têm medo de avião. Mas não de voar de avião. Tenho medo é de cair de avião que esteja voando. Isso não me impede de voar sempre que necessário, mas voo rangendo dentes. Também tenho medo de ser enterrado vivo. Antes de me enterrarem, espetem-me agulhas, por favor. Pois que prefiro ser enterrado morto. Preferiria mesmo, se me fosse dado escolher, jamais ter de ser enterrado, mas, enfim, se tiver de ser, que o seja suficientemente morto. Ah, também temo comprar duzentos gramas de queijo fatiado e depois chegar em casa com aquele tijolo de queijo todo grudado como se fosse um bloco só, e nem sinal das fatias, tão necessárias para a produção de meu salmão à wellington.
Mas meu maior medo é perder a atenção da estimada leitora e do prezado leitor. Morro de medo. Eis então que aqui vou me puxando...
Opinião
Marcos Kirst: daí o porquê daquele baita berreiro que abrimos já na chegada
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