Todos os dias, a simpática farroupilhense Emanuelle Bisutti Gardini, oito anos, percorre os 20 quilômetros que ligam Farroupilha a Caxias para ir à escola. Ela estuda à tarde no 3º ano do Colégio São José e faz o percurso entre as cidades numa van, na companhia do irmão mais velho, Lorenzo, 10.
Por causa disso, o almoço preparado pela mãe Tânia é degustado antes do meio-dia, já que a dupla sai da ampla residência situada no bairro São Luiz às 12h15min. O pai não costuma participar desta refeição, porque almoça na empresa. Tânia também trabalha e se dedica ao cuidado dos caçulas, os gêmeos Isabella e Tiago, um ano.
Série "A Serra que Queremos" reflete sobre o futuro da região
Emanuelle tem uma rotina agitada: faz aulas de inglês, canto, piano e catequese em Farroupilha. A menina não se importa: sonha em ser professora e viver nos Estados Unidos.
- Quero morar em Orlando, por causa da Disney - fantasia.
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Segundo a menina, os pais preferiram que ela estudasse em Caxias, apesar da maioria das amigas estar na cidade natal dela. O deslocamento é comum entre os moradores das duas cidades, e a tendência é que o espaço entre elas fique cada vez mais próximo nos próximos anos.
O secretário municipal de Planejamento de Farroupilha, Deivid Argenta, pensa na Farroupilha de 2050 muito mais próxima das cidades vizinhas:
- Encostando principalmente suas divisas a Caxias do Sul, aumentando muito os impactos no setor de mobilidade urbana.
A arquiteta e professora Erika Cristine Kneib, que desenvolveu pesquisa de pós-doutorado no tema mobilidade urbana, no Instituto Superior Técnico de Lisboa. Segundo ela, esse planejamento é um desafio para todas as cidades, principalmente as brasileiras. O número de carros no Brasil é de 45 milhões de veículos, o dobro de 10 anos atrás - Caxias e Farroupilha têm um carro a cada 1,6 habitantes, Bento Gonçalves um a cada 1,4 habitante.
- Projetar uma cidade no nível municipal e metropolitano para 2050 é um desafio, mas muito necessário para evitar problemas e direcionar o crescimento e o desenvolvimento - afirma.
Para o professor da USP James Wright, que coordena o Programa de Estudos do Futuro, as cidades relativamente compactas - como as da Serra -, devem focar no transporte público e na aquisição de veículos pequenos por parte dos motoristas, como fazem os do Velho Mundo:
- Deve-se adotar um modelo europeu e não norte-americano no que diz respeito ao automóvel.
Já Erika sugere uma abordagem em quatro eixos - priorizar o pedestre e o ciclista, valorizar o transporte público coletivo, racionalizar o uso dos automóveis e planejar as redes urbanas -, que têm como base os princípios da Lei da Mobilidade (leia abaixo). Erika defende que cidades com menos de um século possuem muitas potencialidades para serem planejadas.
- O processo de planejamento é muito similar, independente da idade da cidade: parte-se para um diagnóstico, com um levantamento de dados, informações, problemas e potencialidades; entendendo a realidade da cidade, numa segunda etapa se partem para as alternativas e propostas, que devem ser discutidas com a comunidade; numa terceira etapa tais propostas devem virar lei e serem compatíveis com o orçamento da gestão pública, para que possam ser viabilizadas e implementadas - explica a arquiteta, dizendo que como a cidade é dinâmica, esse processo precisa ser atualizado de cinco em cinco anos e revisado de 10 em 10.
Uma cidade planejada - Não são apenas os planos de mobilidade que precisam ser revistos. Cidades planejadas também devem reavaliar suas diretrizes. Maringá, apontada pelo ranking Connected Smart Cities como a de melhor planejamento urbano do país, foi concebida de forma organizada. Pensada para comportar 150 mil habitantes, estava sofrendo com o crescimento desordenado, pois hoje são 342 mil moradores - nenhum deles vive em favelas.
A fim de reorganizá-la, há 18 anos, um grupo de 22 entidades de diversos segmentos reuniu-se para pensar e alavancar o desenvolvimento, por meio do projeto chamado Repensando Maringá. Dois anos depois, uma lei municipal criou o Conselho de Desenvolvimento Econômico de Maringá (Codem).
O presidente do Codem, Edson Carlos Pereira, destaca que a organização proposta pela entidade faz com que a cidade cresça, há 10 anos, o dobro do que cresce o Estado e o país.
- Nos últimos 11 anos, crescemos 10% ao ano, índice que pode ser comparado ao da China - orgulha-se.- Não tínhamos nenhuma vocação econômica, só sabíamos colher trigo e soja. Nossa universidade não era usada e virou uma incubadora tecnológica - diz.
O passo inicial, provocado pela indignação dos moradores, fez o grupo contratar uma consultoria para diagnosticar o que poderia ser melhorado - o processo exige renovação e, atualmente, há um plano para pensar Maringá em 2047, época do centenário do município.
Para isso, o grupo de empresários arcou com o custo do estudo, orçado em R$ 1 milhão. Será esse documento, elaborado pela iniciativa privada, que indicará o caminho pelo qual a cidade deverá seguir, em parceria com o poder público.
ALGUMAS DIRETRIZES
1. Priorizar o pedestre e o ciclista:
- Todos somos pedestres em alguma parte do nosso deslocamento. Garantir um percurso adequado para que o pedestre possa deslocar-se, com qualidade e segurança, privilegia 100% da população de uma cidade. Já a bicicleta é um transporte barato, que exige baixa infraestrutura e pode substituir com eficiência os automóveis em percursos urbanos de até 8 km. Trata-se de um modo de transporte não poluente que melhora a experiência e o contato das pessoas com a cidade e ainda melhora a saúde da população.
2. Valorizar o transporte público coletivo
- O transporte coletivo tem se mostrado uma das principais soluções para o problema da mobilidade nas cidades, principalmente de médio e grande porte. Ao transportar várias pessoas em um mesmo veículo, geram-se muitos ganhos, como de eficiência espacial e energética, capazes de contribuir para a mobilidade e para a qualidade de vida urbana. No Brasil, este modo, há muitos anos, mesmo sendo público, não tem recebido a atenção, prioridade e valor que merece. Assim, as propostas, projetos e ações que visam valorizar este modo são de grande importância para a mobilidade urbana, tão vital para as cidades.
3. Racionalizar o uso dos automóveis
- O uso excessivo do modo motorizado individual tem causado muitos prejuízos para a cidade. Poluição atmosférica e sonora, consumo de fontes de energia não renovável, incidência de acidentes e saturação da circulação urbana (congestionamentos) são alguns dos problemas causados por este modo. Além disso, racionalizar sua utilização é condição indispensável para viabilizar a prioridade aos modos coletivos e não motorizados. Assim sendo, a racionalização do uso do automóvel é um desafio e praticamente não é aplicada nas cidades brasileiras.
4. Planejar as redes urbanas
- A cidade é composta por diversos sistemas, que funcionam, ou deveriam, funcionar em rede. Os sistemas de transporte e o uso do solo de uma cidade são os elementos que impactam diretamente a mobilidade das pessoas. Assim, planejar como a cidade deverá se desenvolver, e como estará conectada às infraestruturas e sistemas de transporte, existentes ou a serem implementados, torna-se um elemento chave para garantir a melhoria da mobilidade.
A Serra que Queremos
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Tríssia Ordovás Sartori
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