Na mesa de bar ou no almoço em família, tem sempre o sujeito mais velho exaltando para o mais novo de que os bons tempos já se foram e o respeito acabou. Aquele beijo gay na novela, o crime bárbaro que virou catarse nacional ou a pedra de crack queimada na calçada da frente são tratados como indícios do fim do tempos. Tá certo: crack e crimes bárbaros são coisas terríveis. Já beijo gay... bom, é uma demonstração de afeto como o beijo hétero, e no fim, é tudo igual.
Normal ter saudosismo das coisas boas. O problema é a síndrome do ressentimento pelas mudanças que desafiam o tradicional, um ódio sem fundamento que contamina gerações mais novas. Pessoas não conseguem aceitar a ideia de que outras pessoas precisam, querem e têm direito de abrir uma cadeira ao lado sob o mesmo sol e talvez no mesmo clube.
De fato, precisamos lutar pelo que é bom e contra o que é ruim. A lista de desafios é grande: violência, desemprego, drogadição, etc. Mas dizer que a vida era melhor no passado somente porque algumas situações não combinam com seu ponto de vista é difícil de engolir.
A questão é que a vida está melhor agora ou pouco mudou em relação ao passado. Se não acredita, veja exemplos de 20, 30 anos atrás:
- Carne era servida somente na mesa da classe média para cima.
- Assassinatos ocorriam de forma bárbara, e eram tão horrendos quanto agora.
- Pouca gente, mas pouca gente mesmo, publicava livros ou lançava qualquer obra artística em Caxias.
- Faculdade só era possível com raras bolsas de estudo ou para famílias mais estruturadas financeiramente.
- Marido que matava a mulher não ia preso porque a lei brindava à legítima defesa da honra.
- Não havia crédito assim tão fácil. Era para poucos e na base do carnê com juros elevadíssimos.
- Tranqueira no trânsito em Caxias só não existia porque ser dono de carro era quase como ganhar na loteria. Daí, se todo mundo tem carro hoje é porque tem dinheiro sobrando. Ou não?
- Se tu quisesse se expressar ideias ou criticar publicamente um político, bastava postar um texto... nos Correios?
- Os ônibus urbanos de Caxias eram precários e muita gente ficava na parada porque não havia espaço pra todo mundo.
A lista de comparações seria imensa.
O que de fato se perdeu no passado é a amizade, o respeito ao mais velho, o senso de comunidade e o engajamento por causas nobres. Para muita gente, o incômodo não é o fim dos tempos desde que o apocalipse ocorra numa família bem distante, de preferência, do outro lado do mundo.
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