A Justiça Restaurativa contrapõe a Justiça comum porque coloca autor e vítima como personagens principais de um processo. A decisão é compartilhada e só acontece a partir de um entendimento entre os envolvidos. Ao contrário do modelo tradicional, esse diálogo depende apenas da vontade das partes de participar dos chamados Círculos de Construção da Paz. Não há punição, mas consenso.
Com base nesse conceito, quase 1,8 mil pessoas driblaram orgulho e medo para resolver conflitos, antigas mágoas e desavenças em Caxias do Sul. Improváveis em outros tempos, esses encontros ocorreram sob a supervisão de profissionais das três centrais do Núcleo de Justiça Restaurativa.
Desde a inauguração do serviço, em novembro do ano passado, as centrais jogaram luz sobre 233 casos de agressões, ameaças, roubos, brigas por herança, dívidas e outras situações envolvendo adultos, adolescentes e crianças de diversos bairros e classes sociais. Situações que se arrastavam havia anos dentro de lares, em comunidades ou no Fórum sem perspectiva de solução.
A receita parece simples. Na prática, basta reunir alguém que praticou a ofensa ou violência de menor potencial ofensivo em uma mesma sala com a vítima para que ambos possam expressar sentimentos. O objetivo do círculo é estimular o autor a reparar o dano. Contudo, a abordagem requer esforços e ações específicas, o que imprime complexidade à tarefa. Afinal, poucos são corajosos a ponto de assumir falhas ou superar rancor e orgulho. Quem transpõe essas barreiras se sente recompensado, vitorioso.
A história do capoeirista Jean Batista Teixeira Santos, 58 anos, é emblemática. Os quatro filhos e três enteados enfrentavam dificuldades de relacionamento e aprendizado na escola, não havia comida para alimentar a garotada e o salário do trabalhador era e ainda é insuficiente para pagar contas básicas. Ainda assim, ele encarava a rotina com uma certa positividade.
Mas um dia a situação beirou ao insuportável. Sem energia elétrica na moradia no bairro Diamantino, o chuveiro, a geladeira e a única TV se tornaram inúteis. A família ficou semanas às escuras.
O reflexo foi previsível: o desconforto em casa deixou a criançada agitada. Eles brigavam com os colegas na escola e não correspondiam à expectativa dos professores. Logo a culpa recaiu sobre Jean, que aparentemente estaria sendo um chefe de família negligente e poderia ser responsabilizado judicialmente.
O caso acabou encaminhado para a Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude, na UCS. Jean teve oportunidade de relatar o que estava acontecendo.
- Percebemos que a origem dos problemas passava pela estrutura da casa. A moradia era precária, estava pendendo de um barranco e não havia condições de ficar ali. Descobrimos, inclusive, que o local havia sido interditado há anos pelos bombeiros. Tudo isso gerava as outras situações - relata a coordenadora da Central, Katiane Boschetti da Silveira.
Os facilitadores convocaram representantes das escolas, funcionários do posto de saúde, da Secretaria Municipal da Habitação e da Assistência Social, entre outros. Formou-se um grande círculo e se buscou as soluções. O município, por exemplo, já havia doado a madeira para a construção de uma nova casa para a família, mas faltava mão-de-obra.
As irmãs do Imaculado Coração de Maria assumiram a contratação de pedreiros e carpinteiros e a aquisição do restante do material. Jean, por sua vez, se comprometeu a manter filhos e enteados na escola e dar mais atenção. As crianças se tornaram menos agitadas e apresentaram uma performance melhor na escola.
Um novo círculo está programado para reunir o capoeirista e a família. Desta vez, a ideia é prepará-los para a casa nova. Jean absorve os compromissos e as mudanças com serenidade.
- A Justiça Restaurativa era um assunto desconhecido. Me abriu portas e me deu fôlego - resume.
Para comemorar o primeiro ano, o Núcleo lançará uma publicação sobre a implantação da Justiça Restaurativa em Caxias do Sul. O material produzido pela jornalista Caroline Pierosan trará relatos de transformação social e pessoal desencadeados a partir do projeto. Algumas dessas histórias estão reproduzidas nas próximas páginas desta reportagem.
Na quarta-feira, dia 27, haverá palestra sobre Práticas Restaurativas na América Latina. Especialista no assunto, o belga Jean Schmitz fala para o público em geral e estudantes. O encontro é às 19h30min no Bloco H, com entrada gratuita.
AS CENTRAIS DE PRÁTICAS RESTAURATIVAS EM CAXIAS
Central Judicial de Pacificação Restaurativa
Perfil: trabalha apenas com casos que tramitam na Justiça.
Endereço: Rua Doutor Montaury, 2107, bairro Exposição (prédio do Fórum). Fone: (54) 3228-1988
Horário: segunda à sexta, das 9h às 18h
Central de Práticas Restaurativas da Infância e da Juventude
Perfil: atende casos encaminhados por escolas, pelo Poder Judiciário e pela rede de assistência social e proteção.
Endereço: sala 112 do Bloco 58 da Universidade de Caxias do Sul. Fone: (54) 3218.2100, ramal 2324
Horário: segunda à sexta, das 8h às 11h30min e das 13h30min às 17h30min
Central Comunitária de Práticas Restaurativas
Perfil: trabalha com situações envolvendo moradores da Zona Norte. Interessados em resolver pendências com vizinhos ou familiares podem procurar diretamente a central.
Endereço: Rua das Fruteiras, 925, bairro Santo Antônio (prédio do CRAS Norte). Telefone: (54) 3901.1484.
Horário: segunda à sexta, das 8h às 12h e das 13h às 17h