Do lado de fora, muita gente imagina que a rotina no pronto-socorro de um grande hospital tem correria, ambulâncias chegando e saindo, gente falando alto, confusão geral. Ok. Foi com essa impressão também que cheguei ao PS do Hospital Pompéia, o mais movimentado da Serra, ao meio-dia de uma segunda-feira.
>> Confira todo o conteúdo especial produzido
para os 100 anos do Hospital Pompéia
A ideia era acompanhar 12 horas na rotina da unidade. No decorrer da tarde e início da noite, porém, quase nada se pareceu com o que eu presumia (e com o que acontece principalmente entre quintas-feiras e sábados, geralmente no início de cada mês): foram atendidos poucos pacientes - duas vítimas de um acidente de trânsito sem gravidade, um paciente que havia sofrido uma convulsão e um enfartado.
Teve ainda um homem que fraturou a mão e outro que caiu de um andaime e teve um corte profundo no rosto. Mas o dia ainda não havia terminado e como me alertaram alguns funcionários, o pronto-socorro não tem rotina e nunca se sabe o que vai acontecer.
Faltando uma hora e meia para a meia-noite, o telefone do pronto-socorro toca. É o serviço de resgate avisando que um caso grave está chegando. Para eles, era a deixa para organizar a equipe, equipamentos e aparelhagem. Mas não houve qualquer correria. O semblante de todos era tranquilo, porém concentrado.
Assim que ouço a sirene ser desligada na subida da rampa e a porta do veículo se abre lá fora, meu coração dispara. A maca traz uma garota muito jovem, bonita, cabelo comprido encharcado de sangue. Ela havia tentado o suicídio, pulando de um prédio. Meu corpo todo treme e me encolho em um canto para não atrapalhar a dinâmica do socorro. Pela primeira vez, vejo a equipe do pronto-socorro em ação.
Técnicos de enfermagem, enfermeiros, médico plantonista, residentes, todos trabalham em sincronia para salvar a vida daquela pobre menina. Lá fora, a família se desespera. Gostaria de poder ajudá-los, de dizer que vai ficar tudo bem. Mas sou uma mera expectadora, apenas posso desejar que tudo dê certo.
Como a sala da emergência do PS está vazia (geralmente, as quatro macas estão lotadas com pacientes que ficam ali por, no máximo, 18 horas), um grupo de socorro se forma em torno da vítima. Não encontrei no rosto de qualquer deles sinal de pânico ou descontrole. Havia sim, tensão. Cada um, em sincronia, executava uma tarefa: verificar batimentos cardíacos, pressão, nível de oxigenação do sangue, pupilas...
Instantaneamente, um emaranhado de fios, equipamentos de soro e monitores estão ligados à adolescente. Ela chora, grita de dor cada vez que uma parte do corpo é examinada. Em segundos, medicamentos, ataduras, gaze e equipamentos para sutura emergem das gavetas. O pé da menina, desfigurado por uma fratura exposta, é enfaixado para estancar o sangramento até que ela seja levada ao bloco cirúrgico, para o tratamento definitivo. O corte na cabeça é suturado, permitindo o fim de outro sangramento. Rapidamente, a maca segue para a sala de raio-x.
Poucos minutos depois, nos computadores da sala de emergência, a equipe médica procura fraturas na coluna, na bacia e analisa a extensão do ferimento no pé. Na retaguarda, profissionais do bloco cirúrgico já estão avisados, aguardando a conclusão dos primeiro atendimento. Em instantes, o aparelho de ecografia cruza os corredores do Pompéia e chega para verificar um possível dano aos órgãos internos (fígado, baço, pulmões...).
À distância, torço para que aquelas imagens escuras da tela, indecifráveis para mim, não mostrem nenhum ferimento maior. Ao fim do exame, comemoro em silêncio que a jovem não tido nenhuma lesão maior. Faltam poucos minutos para a meia-noite e a maca segue para o outro extremo do hospital, onde o tomógrafo iria avaliar a extensão dos ferimentos e orientar qual o caminho a ser tomado pelos médicos. Era apenas o início de uma longa jornada de tratamento, que incluiu cirurgias e vários dias de hospitalização.
Pré-atendimento
Quem trabalha no pronto-socorro costuma dizer que já viu de tudo. Pura verdade. Isso porque o Hospital Pompéia é referência no atendimento de politraumatizados - incluem-se aí vítimas de acidentes de trânsito, quedas, feridos por arma de fogo e esfaqueados, entre outros.
Para se ter uma ideia, no último final de semana de abril, o pronto-socorro do Pompéia recebeu sete baleados e oito acidentados, incluindo duas crianças. Isso sem contar atendimentos a enfartados, a quem teve pequenas fraturas, foi picado por algum bicho peçonhento...
- Tem dias que não dá tempo nem para a gente respirar. Nós somos o para-choque do pronto-socorro - resume bem a técnica de enfermagem Genessi Gallina, 21 de Pompéia e que atua na portaria do PS há dois.
- A todo momento podemos ter de virar o jogo. Pode estar tudo uma calmaria só e segundos depois ocorrer de recebermos vários acidentados. O pronto-socorro não é um setor para quem é muito metódico, para quem gosta de ter tudo sempre sob controle - diz o enfermeiro Éder Madeira, 41 anos, 16 de Pompéia.
Apesar da correria quase que diária, a democratização do pré-atendimento, feito por meio do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou de empresas privadas de resgate, colaborou muito com o trabalho do pronto-socorro, acredita Madeira.
Antes de o paciente chegar, a unidade é avisada e tem tempo para organizar a equipe e a aparelhagem necessária. E, muitas vezes, de encontrar lugar para tanta gente. Mas nem sempre o aviso prévio chega. Muita gente ainda chega ao PS levado por carros particulares. E aí, mais uma vez, é preciso se virar nos 30.
Na tarde em que estive "de plantão" no pronto-socorro, por exemplo, um operário chegou trazido pelos colegas. Ele havia caído de um andaime a três metros de altura e teve a bochecha rasgada por um objeto. Trêmulo, segurando um trapo, tentava estancar o sangue que escorria do rosto. Alguns minutos depois, ele já havia passado pelo raio-X, que não detectou fraturas, e estava sobre uma maca, aguardando pacientemente pela sutura.
O que me espantou foi ver que em momento algum o homem se queixou ou gritou, apesar de eu imaginar que a dor seria insuportável. A técnica de enfermagem que está ao meu lado capta a minha pergunta e responde:
- As pessoas tem uma tolerância muito particular à dor. Para algumas, um determinado ferimento dói muito, para outras nem tanto.
Junto ao homem ferido, o cirurgião me provoca:
- Ele não está sentindo dor porque é macho. É um gremista macho!
E até o paciente, coitado, entra na brincadeira:
- Sou macho, mas colorado!
- Ah, então suspende a anestesia! - devolve o médico.
Para a equipe do pronto-socorro, que faz uma média de 900 atendimentos por mês (desses, cinco tentativas de suicídio), receber a jovem suicida e atender ao operário ferido fez parte apenas de mais um dia de trabalho. Foi mais um dia em que o serviços do Pompéia fizeram a diferença na vida de alguém.
Para mim, foi dia de ver - e de valorizar - a coragem e o sangue frio dos profissionais que atuam com emergência. Foi dia de ver somente a vida, porque a morte.... ah, essa passou longe do PS quando eu estive lá.
Emergência
100 anos do Hospital Pompéia: pronto-socorro não tem rotina e nunca se sabe o que vai acontecer
Repórter narra a experiência de acompanhar 12 horas no PS
GZH faz parte do The Trust Project
- Mais sobre: