Nem se falava em covid-19 ainda quando o administrador Vinícius Nunes, incomodado com o desencontro de informações trocadas entre a família e a escola do filho, criou uma startup para desenvolver um aplicativo que substituiria a agenda de papel. A Minha Escola, ligada ao grupo Uniftec, vinha apresentando sua criação às escolas com algum sucesso, mas com ritmo de adesão lento, como se espera de uma ferramenta nova. Quando o coronavírus chegou e as escolas fecharam, ainda no início de 2020, a história da startup começou a mudar. Desde o início da pandemia, a empresa cresceu 110% e hoje está em mais de 300 cidades em todo o país, com cerca de 30 mil usuários cadastrados na plataforma. E segue crescendo.
A Minha Escola não é um caso isolado. As startups, de modo geral, ganharam um grande impulso com a pandemia, de carona com a mudança forçada no estilo de vida das pessoas, o que impactou todas as áreas, desde educação e saúde até a gestão interna das empresas. Segundo dados da Associação Brasileira de Startups (Abstartups), a média de empresas com esse perfil criadas no Brasil de 2015 a 2019 cresceu 207%. De 2019 até o final de 2021, período compreendido pela pandemia, o salto foi de 11%. O país tem hoje mais de 14 mil startups distribuídas em 78 comunidades localizadas em 710 cidades. De acordo com dados do Centro Universitário Uniftec, em Caxias do Sul, o desempenho das startups teve um impulso sem precedentes nos dois últimos anos: no geral, as empresas cresceram 140%; na área de automação, Business Inteligence e Inteligência Artificial, o salto médio foi de 50%; nas demais áreas, o crescimento médio beira os 30%.
A área de atuação da Minha Escola, as chamadas "edtechs", ligadas à tecnologia voltada à educação, foi uma das que mais cresceu, impulsionada pela necessidade de ensino remoto, de acordo com o reitor do Uniftec, Claudio Meneguzzi Júnior. Segundo ele, o mundo já vinha em um processo constante de incorporação das tecnologias digitais na vida cotidiana das pessoas e das empresas. O que a pandemia fez foi acelerar o que ele chama de "futuro figital", que é a convivência cada vez mais harmoniosa e produtiva do mundo físico com o digital.
– As ferramentas digitais e sociais possibilitadas pela tecnologia vieram para ficar, pois ampliam nossa presença e nossa produtividade nos variados aspectos da vida. As startups forneceram as soluções tecnológicas quando a pandemia limitou a interação entre as pessoas. Isso explica o crescimento em todas as áreas – afirma Meneguzzi.
Foi exatamente o que aconteceu com o pessoal da Minha Escola. Apesar de já terem criado a ferramenta antes da pandemia, foi no período de isolamento social e escolas fechadas que os usuários compreenderam a necessidade de maior interação entre a sala de aula e a família.
– No começo da crise, sentimos um pouco devido à demora na abertura dos colégios. Mas assim que começaram as aulas online, o produto estourou. Teve mês que chegamos a fechar contrato com 30 escolas – relembra Vinícius Nunes, CEO da Minha Escola.
Idealizado para ser uma agenda eletrônica, em que os pais pudessem trocar mensagens com a escola, o app Minha Escola logo incorporou uma ferramenta de geração facilitada de boletos para o pagamento das mensalidades, com alerta automático para os pais com valores e data de vencimento. Isso derrubou a inadimplência nas instituições que aderiram, tornando a ferramenta ainda mais popular. Adendos como álbum de fotos e controle de notas conquistaram os pais, que imediatamente perceberam o valor do aplicativo. E o crescimento não para: está programada para fevereiro uma atualização no aplicativo que vai permitir o funcionamento de um marketplace, através do qual serão vendidos itens como uniformes, livros e material didático, facilitando a vida dos responsáveis e organizando as vendas pela escola.
– A pandemia forçou o uso de tecnologia nas escolas para viabilizar o ensino e o contato com as famílias. Para nós, o resultado tem sido maravilhoso, pois provamos que as ferramentas digitais são simples, acessíveis às escolas públicas e privadas, e são capazes de melhorar o ensino. O modelo de educação que existia antes da pandemia não voltará mais. Ainda há muito espaço para crescimento – destaca Nunes.
Crescimento, aliás, que se reflete em vagas qualificadas de emprego. Nunes avisa que há oito vagas abertas na empresa, quatro para desenvolvedores e outras quatro para marketing e atendimento. Projeções da Associação das Empresas de Tecnologia da Informação e Comunicação e de Tecnologias Digitais (Brasscom) estimam que o setor vai gerar perto de 800 mil novos postos de trabalho nos próximos quatro anos em todo o país. Somente no Rio Grande do Sul, segundo estimativa da regional gaúcha da Associação das Empresas Brasileiras de Tecnologia da Informação (Assespro-RS), há cerca de seis mil vagas abertas nas empresas ligadas à Tecnologia da Informação no Estado.
Adaptações para sustentar curva de crescimento
Sustentar uma curva de crescimento, aliás, é um dos grandes desafios das startups, ainda mais no cenário pós-pandêmico que deve ocorrer em 2022. O professor Fábio Verruck, coordenador do Programa StartUCS, ligado à Universidade de Caxias do Sul (UCS), explica que toda startup vive, depois da fase de crescimento, um período chamado de "Vale da Morte", que é o momento crucial em que a empresa enfrenta os desafios do mercado real e comprova se tem condições de seguir adiante. Segundo ele, esse momento vai chegar também para as startups que foram impulsionadas pela pandemia.
– Nenhuma empresa consegue fugir do Vale da Morte, que é o momento em que se identificam as dificuldades, os gargalos, se reavaliam os produtos e se repensa os modelos. É o momento de fazer adaptações. Quem passa pelo Vale da Morte, vai decolar e se consolidar – explica Verruck.
Outro fator de preocupação para o professor da UCS é o risco de formação de uma bolha econômica nas startups que, mesmo ainda sem os seus processos traçados e consolidados, estão recebendo aportes milionários por conta do boom gerado pela pandemia. O entusiasmo exacerbado pode gerar especulação, o que prejudicaria o setor no longo prazo, afugentando investimentos sólidos.
– Esse é o momento para as empresas testarem sua resiliência, sua capacidade de adaptação. É preciso apostar na constância de propósitos, sem desistir ou mudar de rumo a toda hora. Olhar para o mercado, compreender os feedbacks dos clientes e fazer as correções necessárias é o que vai permitir que as startups passem pelos períodos de crise e baixa demanda – explica Verruck.
Espaço livre para crescer em 2022
A tendência, quando o assunto é startup, segue sendo de alta em 2022, especialmente em alguns setores como as fintechs e as empresas de segmentos como varejo, saúde e agro. A projeção é da publicitária e membro da Governança do Ecossistema de Inovação de Caxias e do Grupo de Economia Criativa, Luana Belarmino, que aposta ainda no crescimento das startups voltadas para a indústria do entretenimento, após o longo período de demanda reprimida em função da pandemia. Com base em dados levantados pelo Instituto Caldeira, Luana chama a atenção para o fato de que a maioria das startups gaúchas é pequena _ 40% das empresas emprega até cinco pessoas. Somente cinco startups no Rio Grande do Sul têm mais de mil funcionários. Isso quer dizer que a grande representatividade ainda está nos negócios de menor porte, o que dá ao setor muito espaço para expansão.
Segundo Luana, o Rio Grande do Sul vive uma fase de amadurecimento no mercado de startups, em que menos empresas abrem, mas em compensação as que existem são mais sólidas e longevas. Para ela, os empreendedores aprenderam a vender seus produtos e a buscar investimentos com mais efetividade. O segredo é o amplo acesso à qualificação e à informação, que possibilita desde o desenvolvimento de produtos eficientes, capazes de atender as demandas do mercado, até a gestão interna e a formação de um bom time.
– O caminho para o sucesso das startups neste ano pós-pandemia é buscar cada vez mais conhecimento e qualificação, além de atrelar seu nicho de negócio a setores em ascensão. Também é preciso buscar investimentos nos lugares certos e ter parceiros estratégicos, que tenham aderência à proposta da startup. Inteligência de mercado é um outro elemento fundamental para balizar as decisões mais acertadas, alavancando o negócio – completa Luana Belarmino.
Pandemia acelerou crescimento de startup de gestão
O sistema de gestão empresarial que integra planejamento, execução e análise da gestão estratégica estava pronto e ajustado no final de 2019, poucos meses antes da chegada do novo coronavírus ao Brasil. A Scoreplan, startup de Caxias do Sul cujo nome também batiza o aplicativo, foi criada em 2018, e durante um ano aperfeiçoou seu produto, ajustando a ferramenta para as necessidades reais das empresas. Estava tudo certo quando os primeiros casos de covid-19 foram confirmados, bagunçando o planejamento dos clientes em potencial da Scoreplan. Tudo estava nebuloso quando os fechamentos começaram a acontecer. Parecia que o projeto daria errado, afinal, quem iria investir em um novo software de gestão em meio a um cenário de completa incerteza?
Pois foi justamente a crise quem revelou a importância do planejamento estratégico e financeiro das empresas. Com metas ambiciosas para 2021 e 2022, a equipe da Scoreplan temeu que a necessidade de contenção de despesas nas companhias freasse o crescimento planejado. No entanto, passado o impacto inicial, o contrário aconteceu.
– As empresas buscaram o apoio na tecnologia. Antes da pandemia, a transformação digital não era prioridade, mas com a crise, elas sentiram a necessidade de adquirir um software que pudesse gerir todos os indicadores e variáveis como planejamento estratégico e financeiro, projetos, planos de ação, qualidade, gestão de auditorias e riscos. O desempenho das companhias dependia desse controle. E foi aí que crescemos – revela a gerente de Marketing da Scoreplan, Camila Agostini.
A carteira de clientes atendidos pela startup, que no final de 2019 era de quase zero, saltou para 140, com o consequente crescimento na receita mensal e um tíquete médio sete vezes maior do que o inicial. Na opinião de Agostini, as empresas não voltarão mais ao modelo de gestão que praticavam antes da pandemia, o que assegura que a Scoreplan deve continuar crescendo. Para turbinar esses resultados, a equipe planeja a internacionalização do software ainda em 2022, para ampliar o campo de atuação e garantir o cumprimento das metas de expansão.
Legislação simplificada e acordos multilaterais
Coincidência ou não, também foi no período de pandemia que a legislação mais avançou para criar ambientes acolhedores para empresas do setor de tecnologia. Um exemplo disso foi a sanção da Lei da Inovação em Caxias do Sul, que ocorreu no final de dezembro do ano passado. A legislação foi construída ao longo de 2021, com o envolvimento de diferentes setores da comunidade empresarial, da academia e da administração pública. O objetivo é criar mecanismos de incentivo e apoio à inovação, à pesquisa científica, à produção, à capacitação de mão de obra, com consequente abertura de postos de trabalho, e aos serviços de base tecnológica. A lei ainda precisa ser regulamentada, o que deve ocorrer no primeiro semestre deste ano. Aceleradoras de empresas, parcerias para pesquisa, desenvolvimento e inovação, agências de fomento, criação de ambientes promotores de inovação e organização de arranjos produtivos locais são algumas das iniciativas que devem resultar da regulamentação da nova lei.
Nos primeiros dias de janeiro, Caxias do Sul se associou a Porto Alegre, Florianópolis e Joinville para a criação da Tech Road, um consórcio de cidades com vocação para startups e empresas do setor de TI, cuja finalidade será atrair investimentos e eventos em inovação e tecnologia para o sul do Brasil. Por meio do projeto, as cidades poderão mostrar a qualidade, a quantidade e a variedade das suas startups, atraindo eventos e investidores. O próximo passo será discutir o formato do projeto, definindo objetivos e governança, além das condições de entrada de outras cidades interessadas.
Um dos primeiros movimentos a dar um novo ânimo ao setor ocorreu em junho do ano passado, quando o Congresso aprovou e o presidente Jair Bolsonaro sancionou a Lei Complementar 182/21, que trata do Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador. Em discussão desde 2019, a lei aprovada facilita a abertura e o funcionamento das startups, estimulando a atração de investimentos para as empresas desse modelo de negócio. Um dos pontos mais esperados do Marco Legal é a possibilidade de concretizar fusões e aquisições, chamadas de M&A no jargão corporativo, com mais facilidade e menos burocracia. A nova legislação também abre uma possibilidade atraente para as empresas que oferecem soluções compatíveis com as necessidades do setor público mas que, até então, não conseguiam concretizar negócios com os governos devido aos impeditivos impostos pela Lei das Licitações. O Marco Legal disciplina o processo de compra e a contratação de soluções inovadoras pela administração pública, facilitando para governos municipais e estaduais, além do governo federal, a aquisição de produtos desenvolvidos pelas startups.
INCENTIVOS, PROJETOS E MARCOS LEGAIS
EM CAXIAS
Lei da Inovação – Sancionada em dezembro passado. Mecanismos de incentivo e apoio à inovação, pesquisa científica e a serviços de base tecnológica.
Tech Road – Consórcio de quatro cidades – Porto Alegre, Caxias do Sul, Florianópolis e Joinville – com vocação para startups e empresas do setor de TI.
NO PAÍS
Marco Legal das Startups e do Empreendedorismo Inovador – Facilita abertura e funcionamento de startups e consequente atração de investimentos, bem como as relações com o setor público