Capital Brasileira do Vinho, Bento Gonçalves ostenta mais um título: a de capital gaúcha das agroindústrias. A cidade tem o maior número de estabelecimentos familiares regulares de produtos agrícolas do Estado. Conforme dados do Departamento Estadual de Agricultura Familiar e Agroindústria, até 30 de junho eram 33 empresas incluídas no Programa Estadual de Agroindústria Familiar (Peaf), que oferece uma série de vantagens aos produtores.
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O diferencial em Bento, apontado como motivo para estar na liderança do ranking, é a existência de políticas públicas voltadas ao segmento. Desde 2013, o município conta com um projeto específico para as agroindústrias. Instituído por lei, o Programa Municipal de Agroindústria Familiar busca apoiar os pequenos empreendimentos rurais no processo de legalização – é a única cidade do Estado a ter um programa municipal.
Além disso, o município adotou, também em 2013, o Selo Sabor de Bento, com o objetivo de gerar identificação da comunidade, agregar valor aos produtos e estimular o consumo. A certificação tem 36 agroindústrias cadastradas.
— Antes da criação do programa, todas eram tratadas como indústrias, o que inviabilizava muita coisa. O programa possibilitou, por exemplo, o alvará sanitário pela metade do preço. As vistorias são muito mais orientativas do que punitivas. Temos uma relação mais próxima com as agroindústrias, nunca esquecendo que os produtos precisam ter qualidade — explica o médico veterinário e coordenador do Serviço de Inspeção Municipal da Secretaria da Agricultura, Cristiano Selbach da Silva.
As facilidades oferecidas tanto pelo programa municipal quanto pelo programa estadual além do suporte prestado pelos atores envolvidos (prefeitura, Governo do Estado e Vigilância Sanitária) acabam incentivando a regularização dos negócios. Sim, a maioria das agroindústrias nasce de forma despretensiosa e atua por um tempo ilegalmente. Com os benefícios em Bento, cada vez mais os empreendimentos buscam estar em dia com a legislação.
— Existe parceria entre as entidades, é um trabalho bem entrosado. Isso incentiva e motiva as famílias a saírem da irregularidade. A maioria começa a produzir e vender de forma irregular e aprendem a fazer a gestão, mas chega uma hora em que precisam se regularizar. Dificilmente você vai encontrar alguém começando do zero. É alguém que já faz em casa, vende para os vizinhos. E aí nos procuram porque sabem que o trabalho dá resultado — conta Neilton Bittencourt Perufo, técnico em alimentos da Emater de Bento Gonçalves, órgão responsável por conduzir o programa estadual.
Em todo o RS, 1.441 agroindústrias familiares estão cadastradas no Peaf. Nos 65 municípios do Nordeste Gaúcho, são 271 empresas regularizadas.
PERFIL
Das 33 agroindústrias de Bento Gonçalves cadastradas no programa do governo estadual, a maioria é de farináceos (massas, pães, biscoitos): 15. Dessas, de 60% a 70% produzem agnoline, que na cidade é mais conhecido como capeletti. As demais estão divididas em outros ramos. São sete de geleias, três de sucos, cinco de vinho colonial, uma de destilados, uma de miniprocessamento de aipim e um entreposto de ovos.
Além de diversificar a produção das propriedades, as empresas podem servir de alento em momentos de crise. Conforme Perufo, houve anos com quebra na safra em que as agroindústrias "salvaram a lavoura", pois garantiram a renda das famílias.
Embora Bento seja a cidade gaúcha com maior número de agroindústrias regulares, o técnico da Emater entende que ainda há muito espaço para crescer
— Não temos agroindústrias de mel, de embutidos, de polpa, de vinagre, de melado, de açúcar mascavo, de rapadura. E tem mercado para esses produtos — dá a dica.
RANKING
A segunda cidade com maior número de agroindústrias regulares no RS é Erechim, com 29. Em terceiro lugar está Santo Antônio da Patrulha, com 28 agroindústrias.
MAIS EMPRESAS
Onze agroindústrias de Bento estão em fase de regularização. Duas devem ser cadastradas no programa estadual nas próximas semanas.
Confira no mapa as cidades da região com cinco ou mais agroindústrias regularizadas junto ao governo do Estado:
Para manter a família no campo
As agroindústrias de Bento podem vender seus produtos nas feiras da cidade. Em anos “normais”, a prefeitura compra espaços na ExpoBento para que as famílias possam expor. Além disso, 95% da merenda escolar da rede municipal é oriunda das agroindústrias e da agricultura familiar.
Para amenizar os efeitos da pandemia, uma parceria foi firmada entre administração e supermercados do município para que comercializem a produção das agroindústrias. Os incentivos têm um objetivo: evitar o êxodo rural.
— O maior benefício é a manutenção da família no campo. Dos que estão à frente das agroindústrias, 60% são jovens, com menos de 30 anos de idade, e a gente vê o sorriso no rosto deles — diz Cristiano Selbach da Silva, coordenador do Serviço de Inspeção Municipal da Secretaria da Agricultura.
Uma agroindústria com a estrutura física pronta consegue regularizar sua situação junto à prefeitura em cerca de 15 dias. A Secretaria Municipal de Desenvolvimento da Agricultura auxilia no processo burocrático.
— A gente quer deixar todo mundo trabalhar — completa Silva.
Familiar e premiado
A produção de sucos na propriedade da família na Linha Alcântara, no distrito de Faria Lemos, interior de Bento Gonçalves, começou como brincadeira há cerca de 12 anos. Mas os amigos gostaram tanto que Marcia e Edvaldo Gallon resolveram levar a sério o negócio e, há cinco anos, formalizaram a Gallon Sucos. Deixaram seus empregos em uma vinícola e aproveitaram a expertise para apostar na bebida.
— A gente viu que o mercado precisava de um produto de qualidade. De vinho temos um mercado muito grande — explica Marcia.
Neste ano, 25 mil litros de suco foram engarrafados para abastecer lojas, restaurantes e escolas do município. Com a pandemia de coronavírus, os pedidos aumentaram em 10% na loja virtual da empresa. No entanto, a agroindústria viu cair o faturamento devido à ausência de feiras e a não realização de aulas presenciais nos colégios das redes municipal e estadual. Em 2019, o faturamento com a participação em eventos representou 22% do total; com a merenda escolar, 15%.
— É uma parte que não vai acontecer neste ano — lamenta Edvaldo.
Os dois produzem suco de uva tinto convencional em garrafas de 300 ml a 1,5 litro. A agroindústria também comercializa suco orgânico, que é produzido por uma empresa de Garibaldi. Ainda neste ano, a Gallon deve lançar o suco de uva branco e, para 2020, o plano é apresentar o suco de uva com mirtilo.
A criação da agroindústria possibilitou a entrada no mercado e a participação em eventos importantes, que renderam à Gallon três prêmios em apenas cinco anos: medalha de ouro na Grande Prova Sucos do Brasil 2018 e prata em 2016; e medalha de prata na Wine South America de 2019.
— É um reconhecimento, e nos ajuda a justificar para o cliente a qualidade do nosso produto — orgulha-se Edvaldo.
PIB
Conforme a Embrapa, a agroindústria tem participação de cerca de 5,9% no Produto Interno Bruto brasileiro.
Mãe e filha com a mão na massa
Depois de uma vida dedicada à agricultura, Marcia Regina Moroni Comparin, 53, precisou parar. Por causa da asma, não conseguia mais enfrentar o trabalho pesado na roça. Há quatro anos, abandonou a lavoura, mas para não ficar parada começou a fazer massas e vender entre os vizinhos. Com as vendas indo bem, a filha Kariele Comparin, 30, desafiou a mãe a profissionalizar o negócio. Em outubro de 2018, as duas abriam as portas da Regina Massas.
— Eu já pensava em abrir uma agroindústria, mas tinha que ajudar meu marido, não tinha como fazer as duas coisas. Parei por causa da saúde e comecei a fazer massa em casa. Ela (filha) deu um empurrão para vender para fora — conta Marcia Regina.
Com a ajuda de cinco colaboradoras, elas produzem capeletti, espaguete, talharim, macarrão, tortei, tortelones, nhoques e até molhos e pien. A produção é bem diversificada e inclui linha integral também. As massas abastecem as prateleiras dos principais supermercados de Bento. Restaurantes também estão entre os clientes, embora a venda para esses estabelecimentos tenha caído 85% durante a pandemia — para os mercados, aumentou 30%.
O distanciamento social também fez aumentar a procura pelo agnoline, já muito demandado no inverno. Com a esteira adquirida recentemente, o processo de fabricação do item para a sopa aumentou de 10 quilos por tarde para 45 quilos no mesmo período. A compra da máquina e a ampliação do espaço físico da agroindústria são contados com orgulho por Kariele, que deixou o cargo de servidora pública municipal para apostar no talento da mãe.
— Aqui não tem hora, mas o negócio é nosso, e quando é nosso a gente faz com o coração. Ouvir de alguém que o produto é bom é o melhor retorno —alegra-se.
A agroindústria da família Comparin fica no Caminhos de Pedra.
Coisas de nona
Gemile Lurdes Gabriel, 71 anos, plantava orgânicos na Linha Cruzeiro, em Bento Gonçalves, quando um funcionário da Emater a provocou:
— Estão faltando aquelas coisas de nona. A senhora não faz?
— Eu disse que fazia alguma coisa e comecei a fazer uns biscoitinhos —conta.
Hoje, ela faz 10 tipos de biscoito além de pães, grôstolis e bolos — os melhores da cidade segundo os fregueses fiéis que passam toda terça-feira pela banca de dona Gemile na feira no centro de Bento.
Os produtos têm como diferencial o fato de serem orgânicos. Gemile também oferece opções sem glúten e sem lactose. Já são 10 anos produzindo as delícias da marca que leva seu nome — no programa estadual, a agroindústria foi incluída em 2014.
Além da feira do Centro e da Feira Ecológica no bairro São Roque, também às terças, porém pela manhã, dona Gemile vende os biscoitos, pães e grôstolis para uma loja em Bento e para a Fruteira Ecológica de Caxias do Sul. A produção é pequena, já que ela trabalha sozinha. E assim deseja que continue:
— Não adianta querer partir para algo maior se não vou dar conta, não é?
Agroindústrias na porta de casa
Viabilizar a telentrega de produtos é uma das principais dificuldades das agroindústrias – e em tempos de pandemia, o delivery tem sido a única alternativa para muitos para manter-se no mercado. Por isso, na última semana, 50 estabelecimentos da região, em parceria com o Sebrae, lançaram uma ferramenta de venda online, o Agro em Casa.
— O problema hoje é fazer a entrega individualmente. Você vende, por exemplo, um quilo de agnoline a R$ 30 e a entrega custa R$ 20. Isso inviabiliza. A plataforma vem para ajudar — explica Aldoir Bolzan de Morais, analista de processos do Sebrae e gestor do projeto com as agroindústrias.
São 20 empreendimentos de Bento, 20 de Caxias do Sul e 10 de Flores da Cunha e Nova Pádua envolvidos na iniciativa. Líderes coordenam os pedidos e as entregas nas cidades, o que facilita a compra e a venda.
O projeto Juntos para Competir, com as 50 empresas, é desenvolvido desde o início do ano, quando o coronavírus ainda não era uma ameaça real. A intenção era trabalhar com as agroindústrias como vender mais e melhor e prestar consultorias. Com a chegada da covid-19, o projeto precisou ser readequado. Daí a criação da loja virtual.
As agroindústrias participantes receberam suporte técnico e auxilio gratuito do Sebrae para desenvolver a plataforma. Elas precisaram apenas investir na criação da ferramenta, o que, feito em conjunto, acabou sendo barato.
— Se fosse uma agroindústria sozinha fazer, não conseguiria, seria muito caro – imagina Morais.
A implantação da iniciativa tem apoio do APL (arranjo produtivo local) de Alimentos e Bebidas, Sindicatos dos Trabalhadores e Agricultores Familiares Rurais, secretarias municipais da Agricultura e Emater. O projeto do Sebrae continuará sendo executado com as agroindústrias com os objetivos de aumentar o faturamento e a produtividade das empresas e a criação de novos produtos.
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