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Os palcos voltaram a receber os artistas, os assentos voltaram a receber a plateia, as paredes voltaram a receber os quadros. Uma das áreas mais atingidas pela pandemia, a cultura teve um 2021 para ser comemorado, apesar de tudo. Eventos que tiveram de ser cancelados em 2020 puderam, enfim, ser realizados. Alguns até preferiram se manter na onda virtual e apostar em formato híbrido, como a Feira do Livro de Caxias do Sul. Os festivais também animaram as cidades da região. Na mesma onda positiva, patrimônios históricos tiveram seu valor reconhecido, seja pelo poder público, ou recebendo investimento da iniciativa privada. Confira a seguir os principais fatos que marcaram o ano cultural na Serra.
A Feira renasce na Praça
Eventos em formato híbrido parecem ter chegado para ficar, e a 37ª Feira do Livro foi um bem acabado exemplo de como o presencial e o virtual podem coexistir e todos saírem ganhando. Enquanto a Praça Dante Alighieri foi cenário para a feira em seu sentido literal, o comércio de livros, nas redes sociais mais de 18 mil pessoas participaram de atividades como bate-papos, palestras e oficinas. Alguns programas já tradicionais de interação entre autores e o público, como o Escritor na Comunidade e o Passaporte da Leitura, também migraram para o ambiente virtual, embora devam voltar a ser presenciais quando a pandemia tiver passado, por sua natureza voltada para o encontro.
A Praça também foi palco, durante a Feira, para dezenas de apresentações de artistas e projetos artísticos locais, cumprindo com uma antiga reivindicação da comunidade cultural de ter maior participação nos eventos da cidade. E o público compareceu: foram mais de 118 mil visitantes durante os 17 dias de Feira, que muitas vezes ocuparam todos os assentos colocados de frente para o palco.
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Ao final, o evento que teve como patrona a escritora e professora de Letras Alessandra Rech, e como amigo do livro o produtor cultural Cláudio Troian, comemorou números muito melhores que a Feira de 2020, ainda mais fortemente prejudicada pela pandemia. O número de exemplares vendidos mais que dobrou: foram 29.650 obras vendidas em 2021, contra 14.427 em 2020. É verdade que em 2019 foram comercializados mais de 64 mil exemplares, mas naquela ocasião havia 38 bancas na praça, enquanto a Feira mais recente teve apenas 18, todas elas de livrarias e editoras locais.
As orquestras voltam ao palco
A tristeza com que foi recebida a notícia, em julho de 2020, do encerramento das atividades da UCS Orquestra, foi inversamente proporcional à alegria com que seu retorno foi saudado em outubro deste ano, para um emblemático Concerto da Primavera, estação que representa o despertar. Em novo modelo adaptado para a nova realidade econômica, com instrumentistas contratados sob demanda, e não mais como funcionários, a volta se dá com a expectativa de um calendário cheio em 2022, garantindo trabalho para os músicos e encantamento para o público.
O ano também marcou a volta aos palcos da Orquestra Municipal de Sopros, com troca na batuta: saiu Fernando Berti Rodrigues, que pediu exoneração em junho, entrou Gilberto Salvagni (os dois maestros se revezam no cargo desde a fundação da Orquestra, em 1997). Embora nunca tenha encerrado os trabalhos, a Orquestra de Sopros conviveu com muitas incertezas ao longo dos últimos anos (desde os cortes drásticos de orçamento feitos durante a gestão de Daniel Guerra), recorreu a gravações de clipes para se manter em atividade na pandemia, mas foi bancada pela Secretaria Municipal de Cultura e segue firme rumo a mais um ano.
A Estação Férrea ressurge
Eventos como o Concerto de Dia das Crianças, apresentado pela Orquestra Municipal de Sopros, o Festival Sálvia, o Aldeia Sesc e shows do Natal dos Encontros revigoraram o Largo da Estação Férrea no segundo semestre de 2021. O espaço histórico voltou a ser ponto de encontro a céu aberto e de fruição cultural dos caxienses, que desfrutaram tanto do entorno da Secretaria Municipal da Cultura quanto da Praça das Feiras.
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Outra novidade bacana foi a inauguração do Pátio da Estação, empreendimento que deu nova vida às antigas sedes da Cooperativa Vinícola Caxiense e da Companhia Vinícola Rio-Grandense, transformando o complexo em um centro de lazer, gastronomia e serviços, inspirado nos mais modernos mercados a céu aberto de países europeus.
Quanto mais a pandemia arrefece, mais a Estação que marcou o início do progresso em Caxias, um século atrás, volta a estar presente no cotidiano da cidade, unindo história, cultura e modernidade.
Ouça a retrospectiva:
Um edital que entrou para a história
Em meio ao momento mais crítico da pandemia, a cultura no Estado e na região ganhou fôlego com o edital Criação e Formação - Diversidade das Culturas, executado pela Fundação Marcopolo, com recursos da Lei Federal Aldir Blanc.
Em números absolutos, R$ 20 milhões foram destinados a 592 projetos, de 127 municípios gaúchos. Trazendo para a Serra, mais de 60 propostas foram viabilizadas, somando as categorias Pessoa Física e Pessoa Jurídica.
Mais do que movimentar a produção cultural, viabilizando a produção de documentários, exposições e oficinas formativas, o edital permitiu o surgimento de projetos que priorizaram a inclusão social, como as oficinas Vivenciando o Artesanato e Sketches - Desenhando a História, desenvolvido pelo Museu dos Capuchinhos junto a crianças acolhidas em uma casa-lar de Caxias, e o Encarcerarte, que levou espetáculo de palhaçaria para penitenciárias femininas gaúchas.
Ao final do cumprimento dos projetos, chamou a atenção da organização o fato de que 42% dos proponentes estavam participando pela primeira vez de um edital de fomento, o que mostra a importância de desburocratizar e ampliar o acesso, a fim de que mais agentes usufruam dos recursos públicos para a cultura.
Festivais movimentaram a região
Para quem estava com a famigerada "saudade de um showzinho" provocada pena pandemia, o avanço da vacinação e o relaxamento dos protocolos sanitários permitiram público e artistas finalmente se reaproximarem. Com isso, alguns festivais que nos últimos anos foram boas novidades na região, como o Paralelo, realizado às margens do Lago São Bernardo, em São Francisco de Paula, e o Festival de Música de Nova Prata, na Praça da Bandeira, puderam ser realizados muito próximos da normalidade.
Em Bento Gonçalves, a primeira edição do Jazz & Wine Festival, que havia sido anunciada com toda a pompa para ser uma das grandes atrações do cenário musical nacional, pôde enfim ser realizada, mesmo com atrações mais modestas e restritas à cena regional. A tendência (e a expectativa) é que, com a cultura voltando a funcionar a pleno, mais empresas possam voltar a investir em cultura e assim permitir a realização de festivais ainda maiores.
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Enquanto isso, Caxias do Sul terá de aguardar até novembro para ter mais um Mississippi Delta Blues Festival, que tem sua próxima edição na cidade anunciada para os Pavilhões da Festa da Uva. Antes disso, o parque temático do blues irá desembarcar em Gramado, em agosto.
E por falar em shows e em Festa da Uva, o principal evento de Caxias já anunciou suas atrações nacionais para a 33ª edição, que irá ocorrer entre 18 de fevereiro e 6 de março. O público poderá pular e cantar junto com Dilsinho, Jorge e Mateus, Nando Reis, Alok, Israel e Rodolffo e DJ Guuga.
O folclore ganhou o mundo virtual
Dois dos principais festivais de folclore do mundo são realizados na Serra. E, graças à internet (e à pandemia), o mundo pôde também assistir às apresentações de danças típicas regionais dos cinco continentes, que integraram a programação do 48º Festival Internacional de Folclore de Nova Petrópolis, em julho, e do 17º Festival Internacional de Folclore de Nova Prata, em outubro.
Com propostas parecidas, ambos trazem para a Serra um pouco dos ritmos de diversos cantos do mundo, e valorizam as próprias expressões folclóricas, dando enfoque também para a gastronomia típica, ensinando sobre algumas receitas ancestrais. No caso de Nova Petrópolis, a culinária alemã. Em Nova Prata, a italiana. Esse aspecto também foi levado para o virtual, com oficinas intercaladas com a programação artística.
Outro evento tradicional que tomou o 'rumo" do mundo digital foi o Encontro de Artes e Tradição Gaúchas, o Enart, que se uniu ao Fegadan e ao Fegachula no 1º Festival dos Festivais, realizado em novembro, em Santa Cruz do Sul. Esse, no entanto, teve formato híbrido, com a presença do público, mas também com transmissões ao vivo pela internet, que somaram mais de 20 horas em três dias. Sete CTGs da Serra participaram do encontro, que reuniu cerca de 1,2 mil participantes.
Caxias do Flow
Uma das novidades mais bacanas do ano cultural em Caxias do Sul foi a realização do 1º Flow _ Festival de Linguagens em Arte e Tecnologia, em outubro. Diversos pontos históricos e simbólicos da cidade receberam projeções visuais com o trabalho de 10 artistas gaúchos que haviam sido selecionados para um período de residência.
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O público que parou para acompanhar ou que apenas passou por locais como o Arquivo Histórico João Spadari Adami, a Praça Dante Alighieri, a Secretaria Municipal de Cultura, entre outros, pôde ver esses cenários como nunca tinham visto, com projeções artísticas e iluminação especial que chamaram a atenção para esses pontos de interesse da cidade.
A programação também contou com atividades paralelas, como uma instalação em realidade virtual inédita em Caxias, a Floresta Encantada, que mais de 200 pessoas até a sala de teatro do Ordovás para interagir com os índios e a fauna da floresta amazônica, criados digitalmente por uma dupla de artistas paulistas.
Ousadia com um pouco de utopia
A construção do novo Plano Municipal de Cultura de Caxias do Sul foi um exemplo de coletividade. O processo iniciou nas pré-conferências, realizadas em formato virtual e divididas por setores de interesse, mas sempre abertas ao público. Destes encontros saíram 55 metas que seriam aprovadas durante a 5ª Conferência Municipal de Cultura, realizada em agosto, que teve como convidado o colombiano Jorge Melguizo, ex-secretário de Cultura de Medellín e tido como responsável pela transformação que levou a cidade colombiana a sair de altos índices de criminalidade para ser referência em desenvolvimento para o mundo.
É com esse olhar para a cultura como aliada da cidadania que o ousado PMC quer colocar Caxias do Sul, que já foi a capital nacional da cultura, novamente como protagonista nesta área que dialoga diretamente com a economia, com a educação e com a segurança pública. O plano foi aprovado por unanimidade na Câmara Municipal, no dia 9 de novembro, e sancionado na íntegra pelo prefeito Adiló Didomenico, no último dia 17.
Entre as metas estão a manutenção e fortalecimento de grupos culturais mantidos pela prefeitura; o mapeamento de artistas, espaços e ações culturais da cidade a fim de nortear iniciativas mais inclusivas; a garantia de 25 mil VRMs para o Financiarte (o que daria R$ 800 mil em 2022); a garantia do uso da Maesa primordialmente para a cultura; a construção da Cada da Capoeira e de uma Rua Coberta, nos moldes das que já existem em municípios vizinhos e que são frequentemente utilizadas como espaço para eventos.
Natal Luz voltou a dar espetáculo
Após experimentar, no ano passado, a frustração de ter de cancelar os espetáculos pela primeira vez em 35 anos, a edição desde ano do Natal Luz pôde, enfim, retomar as apresentações artísticas que atraem milhares de turistas e geram emprego e renda para centenas de artistas e demais trabalhadores. Graças ao avanço da vacinação contra a Covid-19, é claro.
Foram cinco espetáculos inéditos criados para este ano, sendo o carro-chefe Natalis - A Criação. A atração conta com a participação de um elenco composto de 46 artistas entre eles cantores, performáticos e acrobatas - alguns deles com experiências no Cirque Du Soleil e no Circo Tholl. A atração também conta com tecnologia de projeção a laser em telas de água, conhecidas como "water screen", fogos sincronizados e águas dançantes, além da narração feita por Cid Moreira.
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Outra novidade desta temporada é o espetáculo O Reino do Natal, realizado diariamente na Expogramado. A atração é formada por uma grande estrutura, dividida em cinco áreas temáticas e em formato circular, que levam os visitantes a embarcar em shows de aproximadamente 10 minutos de duração cada - totalizando quase uma hora da atração completa.
Com programação até o fim de janeiro, a estimativa dos organizadores é de que 2 milhões de pessoas passem pelo evento.
Valor histórico reconhecido
Embora pareça ser uma novela interminável, a luta da Associação Moinho Cultural para poder permanecer no histórico Moinho Covolan, em Farroupilha, teve um de seus capítulos mais importantes em agosto deste ano. Vale recordar que o imbróglio entre herdeiros do prédio e a entidade cultural, criada e presidida por um dos herdeiros, se arrasta, pelo menos, desde 2018. Naquele ano foi criado o primeiro abaixo-assinado pedindo o tombamento do prédio pelo Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Farroupilha.
Pois foi depois de muitos episódios, incluindo uma visita da secretária estadual de Cultura, Beatriz Araújo, e até um leilão do imóvel, que o tombamento finalmente foi aprovado pelo órgão municipal, na modalidade Volumetria Externa (que protege a fachada e paredes principais do bem tombado). Com o reconhecimento do valor histórico, além de afastar investidores interessados em derrubar o prédio, a Associação também tem caminho facilitado para acessar leis de incentivo e projetos que beneficiem a preservação.