Dos seis mil visitantes que passam anualmente pela Floresta Nacional de São Francisco de Paula apenas 7% eram turistas. A grande maioria é formada por estudantes de 30 universidades que usam a área de 1,6 mil hectares, a 21 quilômetros da cidade, para desenvolver pesquisa acadêmica. Grupos de observadores de aves também estão entre os frequentadores habituais da Flona, como é mais conhecida, assim como praticantes de caminhada que percorrem o Caminho das Araucárias, de Canela a São Joaquim-SC. A espécie nativa, aliás, é a razão de ser da unidade, que no último dia 14 teve assinada a concessão de seu uso público pela iniciativa privada.
As flonas de Canela e São Francisco de Paula e os parques nacionais Aparados da Serra e de Serra Geral (RS/SC) são as quatro primeiras de 23 áreas de conservação incluídas na agenda de concessão do Ministério do Meio Ambiente, que quer replicar no Brasil o modelo norte-americano de exploração de parques naturais. O objetivo é que a iniciativa privada equipe os locais para ampliar a oferta de visitação, com a construção de mais e melhores leitos de hospedagem, espaços para alimentação, entre outras benfeitorias.
Ao contrário do que se pode imaginar num primeiro momento, os gestores das unidades não veem a concessão para exploração turística como um entrave para o trabalho de preservação desenvolvido pelo ICMBio, órgão federal responsável pela administração de das unidades de conservação pelo país. Tanto em São Chico, onde a reportagem esteve na última segunda-feira, quanto em Canela, a expectativa é positiva.
– Nós amamos a floresta nacional e queremos que a sociedade possa usufruir dela. Por isso somos a favor. Sempre tivemos visitação, mas nunca pudemos fazer a devida divulgação por ter pouco pessoal e pouca estrutura para receber as pessoas. Acabava sendo uma divulgação mais no boca a boca, para quem não se incomodava dos nossos quartos não terem roupa de cama, ou da xícara não combinar com o pires. A concessão vai melhorar o atendimento e permitir atender a um público mais diverso – destaca a servidora que guia nossa visita à Flona de São Chico, mas que prefere ter o nome preservado.
– A concessão é um grande avanço, principalmente porque as unidades vêm sofrendo com perdas de investimento nos últimos anos. E há exemplos semelhantes positivos, como o Parque Nacional do Iguaçu (no Paraná, onde ficam as Cataratas do Iguaçu) e o Parque Nacional da Tijuca (no Rio de Janeiro, onde ficam o Corcovado e o Cristo Redentor). Vamos mudar de patamar tanto no atendimento ao público quanto nas possibilidades de desenvolver pesquisa aqui dentro, além de gerar empregos – avalia Reinaldo Araújo, gestor da Flona de Canela, unidade com pouco mais de 550 hectares, próxima ao Parque Estadual do Caracol.
Trilhas, cascatas e bosques
Na Flona de São Chico, que tem investimento previsto de R$ 72 milhões ao longo dos 30 anos do contrato com a concessionária, a expectativa é de que o número de visitantes anuais possa saltar dos atuais seis mil para 40 mil até 2023. O retorno para os investidores virá principalmente da cobrança de ingressos, cujo valor ainda não foi divulgado, mas o contrato estipula o limite de R$ 50 por pessoa (atualmente os valores partem de R$ 11, com preços diversos considerando se o visitante é pesquisador e se irá pernoitar).
Fora o ar puro, o cheiro de mato e o canto dos pássaros, os principais atrativos são trilhas, mirantes, bosques e quedas d´água, como a Cachoeira Bolo de Noiva e a Cascata da Usina. Embora a fauna seja rica e repleta de espécies ameaçadas de extinção, também é raro o visitante ver um leão baio, uma paca ou uma jaguatirica. Não é um zoológico, afinal de contas. O que se vê são vestígios destes animais que habitam a mata fechada, como pegadas ou uma casca de pinhão, cuja mordida permite identificar a espécie que se alimentou do fruto. Se der sorte, o visitante pode avistar um bugio, primata que é um dos símbolos da região (inclusive cultural, já que dá nome a um ritmo musical).
– A gente espera que a concessionária saiba valorizar esse aspecto do espaço de conservação da unidade como um atrativo. A Flona tem valores fundamentais registrados em plano de manejo, e entre eles estão a biodiversidade, a água, e isso seguirá preservado e servirá como um diferencial – comenta a servidora, que atua desde 2005 na unidade.
Um dos carros-chefes da visitação é a trilha de 1,5 km até duas araucárias centenárias, ambas com mais de 500 anos e mais de 30 metros de altura. Uma delas caiu em 2013, a outra segue de pé. O esperado aporte de recursos, além de equipar melhor a parte de hospedagem e alimentação, deverá melhorar a sinalização, a demarcação das trilhas e dar mais segurança aos visitantes, permitindo um acesso mais universal.
– Às vezes aquele purista que acha que não tem que ter um corrimão, um degrau ou uma passarela não entende que seu pensamento é egoísta. É preciso garantir o acesso a pessoas de mais idade, a crianças. Um problema que nós tínhamos é que toda a estrutura das trilhas era feita por grupos de voluntários, que conseguimos reunir poucas vezes por ano. É outro ganho que teremos com a concessão – destaca a nossa guia.
Ainda na questão da acessibilidade, vale destacar que a Flona já dispõe há alguns anos de uma cadeira de rodas adaptada Julietti, desenvolvida para permitir o acesso de pessoas com mobilidade reduzida aos roteiros de aventura. O equipamento foi desenvolvido pelo aventureiro Guilherme Simões, a fim de permitir que a esposa, Juliana, após desenvolver uma rara síndrome neurológica, não deixasse de acompanhá-lo em suas aventuras. A aceitação e a ampla divulgação na mídia tornaram a Julietti muito conhecida no meio. Embora algumas unidades de conservação tenham recebido exemplares comprados pelo Ministério do Meio Ambiente, a Julietti de São Chico foi adquirida através de vaquinha.
Gestão ambiental segue com órgão público
Como contrapartida social prevista no edital, o consórcio deverá direcionar parte do valor arrecadado com a visitação em incentivos para ações de voluntariado, controle de espécies invasoras (os javalis são os que provocam maiores danos) e integração com a comunidade.
Um dos motivos que entusiasmam as equipes é a possibilidade de trabalhar mais focada na preservação e manejo, como a extração da madeira de reflorestamento, que nos últimos anos praticamente deixou de ser feita (14% da Flona é de floresta de pinus, plantada com finalidade comercial, cujo lucro é da União)
– A concessionária ficará responsável por toda parte que é de uso público, como a visitação. Hoje, se um visitante diz que o chuveiro está queimado, é um de nós que tem de trocar. Isso nos toma tempo, porque a equipe é reduzida e tem muita demanda – exemplifica nossa guia em São Chico.
As oito casas disponíveis para hospedagem são simples construções em madeira, remanescentes do início da ocupação da Flona nos anos 1940. Na época o local chegou a abrigar quase 100 servidores com suas famílias, dedicados à extração sustentável de madeira, à produção de erva-mate e ao plantio de araucárias (900 hectares da Flona são de mata nativa, enquanto 400 hectares são de araucárias plantadas naquele período). Uma capela construída na época serve hoje de auditório, assim como outros imóveis foram adaptados para outros tipos de uso funcional. O aumento de oito para 20 casas de hospedagem é um dos compromissos previstos no contrato de concessão, que também irá investir na contratação de pessoal de hotelaria para profissionalizar o atendimento, até então prestado pelos servidores do ICMBio.
O prefeito de São Francisco de Paula, Marcos Aguzzolli, que acompanhou virtualmente a reunião para assinatura do contrato firmado pelo Ministério do Meio Ambiente com o consórcio formado pelas empresas STE Engenharia e a Urbanes, também vibra com o atrativo que irá incrementar ainda mais o turismo ecológico no município.
- Com a pandemia, aumentou muito a procura por passeios ao ar livre, sobretudo nos parques florestais. O turismo de contemplação será um dos mais buscados – declarou, em entrevista ao repórter Fábio Schaeffner, de GZH.
Impasse com os povos originários
A concessão das duas florestas nacionais se dá em meio à reivindicação de tribos indígenas de direito à demarcação de parte de terras onde viveram seus ancestrais, povos originários da região. Índios da tribo Kaingang, em Canela, e da tribo Xokleng, em São Chico, cobram desde 2010 que a Fundação Nacional do índio (Funai) faça um estudo a fim de comprovar a presença de suas etnias dentro de ambas as florestas, e que delimite os territórios onde possam se estabelecer.
Vindo de Ibirama-SC, 12 famílias xokleng chegaram a ocupar a Flona de São Chico, mas saíram em cumprimento a uma decisão judicial favorável à reintegração de posse pelo ICMBio. Montaram então um acampamento em frente à entrada da unidade, como forma de pressionar pacificamente por uma decisão em seu favor. Quando a reportagem esteve na Flona, no início da semana, apenas um jovem casal permanecia no acampamento, com seus filhos e cães. Parte migrou após o inverno mais rigoroso e outra parte viajou a Brasília, a fim de participar de protestos contra o Marco Temporal, e estaria agora retornando.
Em Canela, há famílias kaingang dentro da Flona, cuja permanência foi autorizada devido a uma medida judicial válida para o período da pandemia. Assim como os xokleng, eles aguardam pela Funai a fim de ter direito garantido à parte que reivindicam. O gestor da Flona de Canela, Reinaldo Araújo, comenta que um problema acarretado pela presença das famílias indígenas é quanto aos seus cães, que invadem a floresta e matam pequenos animais silvestres, por vezes também se ferindo quando atacam ouriços. A questão dos cães também é um problema relatado em São Chico.
Pela lei que instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação de Natureza (Lei n.9.985/2000), as Flonas são unidades de conservação de uso sustentável, sendo permitidas a pesquisa científica, a visitação e a manutenção de populações tradicionais. Ou seja: em tese, pesquisadores, visitantes e povos originários podem coabitar estes espaços. A questão é saber se os povos que as reivindicam possuem comprovado vínculo ancestral com a localidade, e aí entra a morosidade do sistema.
O Ministério Público Federal questiona a concessão dada sem a prévia apreciação fundiária envolvendo as comunidades indígenas. Três ações civis públicas foram ajuizadas na comarca de Caxias do Sul, exigindo que a União e a Funai realizem o estudo antropológico para identificação e delimitação de possíveis áreas indígenas. O caso, porém, segue sem avançar. A principal crítica da procuradora Luciana Guarnieri, que moveu a ação, é quanto a lentidão da Funai em se manifestar, já que três pedidos formais foram feitos (em 2010, 2016 e 2018). Tal atitude, segundo Luciana afirmou em entrevista ao repórter Leonardo Lopes, do Pioneiro, contribui para o acirramento dos ânimos entre os índios e o ICMBio.