A turma toda queria ler, o que era bem raro. A turma toda tinha feito o exercício, o que também era raro. A professora tinha solicitado que escrevêssemos como imaginávamos o ano de 2017, vinte anos à frente de onde estávamos. Nos contou um pouco sobre "Admirável mundo novo", sobre "1984" e despejou a tarefa.
Abrimos ali uma fresta no tempo e no espaço e ditamos o mundo que queríamos. Carros voadores estavam por toda a parte, dispositivos de comunicação holográfica, relógios atômicos, roupas que se adaptavam ao clima, o famigerado skate voador, casas inteligentes que se pareciam muito infantilmente com o trailer do pato Donald, viagens interplanetárias, viagens intergalácticas, alienígenas de todas as espécies em passagem pela terra, o universo numa bola de gude, como nos apontavam os filmes, a clonagem foi outro assunto que tomou conta das redações, ovelhas, cavalos, lagartos, porcos, aves, criaturas da nossa imaginação afetada pela Ilha do doutor Moreau, as discussões morais implícitas nos textos de nós adolescentes, armas nucleares haviam sido banidas, em maioria, imaginávamos um mundo sem guerras, sem pobreza, um mundo melhor que aquele, a tecnologia nos salvaria, teríamos recuperado rios, açudes, praias, o lixo geraria energia, a própria escola foi imaginada como um laboratório de aprendizagem, de cultura, de arte sem limites.
Naquele tempo, eu não sabia que seria escritora, não sabia que viajaria bastante por aí e também não sabia que erraríamos tão feio.
Fechamento de exposições de arte, moções de repúdio contra livros, o que era reivindicação do MPL foi soterrado por disparates do MBL, os sociólogos Lobão e Kim Catacoco são a voz da vez. Alexandre Frota e o estupro anunciado processando Eleonora, ejaculação pública, isso se questiona, se releva até, mas lançam projetos que proíbem (proíbem!) o debate sobre gênero, sobre sexo, sobre arte, escolas áridas, universidades à mingua, nos tratam a todos como se fôssemos idiotas, e nos jogam uma ração propagandeada como salvação, nos jogam números relativos à economia quando o respeito à cultura é número zero, o respeito à humanidade, outro zero.
Não temos carros que voam, nem viagens intergalácticas, nesse sentido, fizemos pouco, creio. Mas a perversidade de quem está no poder vai cada vez mais à mostra, com uma camada de cafonice e idade média para completar a fantasia que nos tira até o desejo de imaginar. O projeto: nossa aniquilação. Não vê quem não quer ou quem está muito envolto no seu privilégio.
Eu tenho muito medo. Mas também tenho muita vontade de fazer alguma coisa para que possamos ao menos imaginar os próximos vinte anos.