Repare: nos momentos em que tudo parece estar nos sendo retirado, algo de bom acontece. Pode ser de forma bem sutil, como geralmente é, mas não deixa de carregar em si a força que renova em nós o gosto pela vida. Às vezes, demoramos certo tempo para nos dar conta disso, pois esses delicados presentes costumam chegar de maneira calma, discreta. Se não estivermos alertas, é bem provável que nossos sentidos capturarão somente o que está nos atormentando. Por isso a necessidade da poesia, como um filtro que clareia o olhar e nos permite ver o equilíbrio que permeia cada existência.
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Tenho procurado ficar atento a esses sinais, trocando a queixa pela gratidão. Durante muitos anos, li os filósofos considerados pessimistas, especialmente Schopenhauer. Eles representam um rasgo de lucidez. Mas já não me satisfazem mais. Como sou destituído dessa fé que tudo explica e a tudo é capaz de suportar, criei para mim a religião da alegria. E testo seu valor constantemente, em especial nas horas mais sombrias, quando a nossa inclinação é pintar de cinza toda a paisagem. Respiro fundo e vou para a rua. Amo o silêncio, mas sei que ele deve ser só uma nuance, não toda a paleta de cores. Enquanto sentir em mim o gosto pelo movimento, sei que conseguirei caminhar sobre a corda retesada.
Há uma tendência muito forte de abrigar em nós o descontentamento. O outro sempre é mais rico em bens materiais, em relacionamentos. Julgamos pela aparência. Não participamos de sua realidade cotidiana. Se assim o fizéssemos, iríamos perceber que não há grandes diferenças com o que acontece conosco. De onde se extrai a certeza de que o valor das coisas é atribuído por nós.
A maneira como lidamos com as crises é que irá determinar a nossa saúde mental. Essa que nos permite encontrar o remédio que nos cura. Mesmo quando há o cansaço físico e emocional, quando lutamos para não desistir, é possível acessar essa matéria volátil, mas tão necessária, chamada esperança. Alguns estão mais instrumentalizados do que os demais quando se deparam com a dor, a apatia.
Muitas vezes basta olhar para o lado e ver como é a reação alheia. Sou impulsionado por essa certeza: se alguém é capaz, eu também sou. Já pesa sobre meu ser a mão pesada do tempo. Incinero os sentimentos negativos e vou em busca de algo que me faça bem. Nunca sei exatamente o que é. Deixo que a intuição seja o meu guia. Agindo assim, dificilmente me equivoco. E essa busca é mais orgânica do que espiritual. Sei que o corpo faz as melhores escolhas. Seja na alimentação, na seleção de amigos, nas decisões profissionais. Difícil explicar isso. Apenas é.
A leveza paira em tudo. O peso é você quem atribui.
Opinião
Gilmar Marcílio: equilíbrio
Criei para mim a religião da alegria. Respiro fundo e vou para a rua
Gilmar Marcílio
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