Nasci no mesmo ano em que Brasília foi inaugurada. Tenho essa afinidade cronológica e existencial com a Capital. Fui uma vez a Brasília, nos tempos de universidade, para participar do Enecom, o Encontro Nacional de Estudantes de Comunicação, lá pelos idos de 1985. O encontro e a hospedagem foram na UnB, a Universidade de Brasília, universidades que eram malvistas e viram as verbas minguarem até o limite do osso no governo anterior. Foram 36 horas de viagem de ônibus. Saí de Porto Alegre em uma noite de julho, com 5 graus de temperatura, cheguei em Brasília pela manhã com perto de 30 graus, 36 horas de viagem. Uma empreitada sem tamanho.
Também já passei por lá fazendo escala para outras viagens e, dependendo do voo e da posição dentro do avião, vê-se a Praça dos Três Poderes do alto. Lembrei dessa viagem que fiz quando vi nas redes sociais vídeos de moradores da região que se dirigiam de ônibus para Brasília, para os atos antidemocráticos de 8 de janeiro. Há quem tenha dúvidas ainda de que os atos são antidemocráticos. Pediam intervenção militar, isto é, atropelar e desconsiderar a voz das urnas. E foram violentos. Nem todos os bolsonaristas são violentos, mas pedir intervenção militar não tem salvação: é assinar atestado de antidemocrático. Agora, nem todo eleitor de Bolsonaro é golpista, é violento, é necessariamente antidemocrático. Existe quem tenha optado por um candidato mais próximo daquilo que pensa, ou representantes da direita democrática. Aliás, que falta está fazendo a direita democrática, que acredita na democracia, para isolar os extremistas radicais de direita.
Pois bem, em 1985, havia uma cerimônia no Palácio do Planalto, todas às sextas-feiras, por volta das 18h, de descida da rampa. O presidente descia a rampa como sinalização de se aproximar do povo. Lembro de ter ido até a Praça dos Três Poderes com outros colegas, uma delegação de estudantes de Comunicação, e de testemunhar a descida do ex-presidente José Sarney da rampa. Embarcou no veículo oficial, passou a uns 15 metros de mim e acenou para as pessoas que estavam à frente do palácio. Eram comuns os protestos e as manifestações naquela época. Manifestações democráticas, claro, e o clima pesou um pouco na passagem de Sarney. Mas tudo dentro da ordem.
Havia faixas estendidas, e uma delas guardo na memória até hoje: “Sei lá, Sarney. Mil coisas!” Era uma forma irreverente de expressar as angústias da população, tantas eram as demandas. Foi dado o recado: “Mil coisas, Sarney.” Foco nas demandas. A democracia, ninguém que foi ao Planalto naquele dia, e naqueles dias, pensou em ameaçar, recém saído que estava o Brasil de uma sucessão de governos militares. Dizia-se que era o início da redemocratização. Sarney seguiu seu rumo e ninguém atacou o Planalto. Bem diferente do recado dado por quem foi a Brasília em 8 de janeiro, na forma, no conteúdo, nos protagonistas, sem nenhum apreço pela democracia. Hoje, 37 anos depois, é preciso cerrar fileiras na defesa da democracia. Quem diria! Que retrocesso.