Quando quero ver melhor o mundo tiro os óculos. Minha visão está viciada em formatos, comportamentos, modos de viver. Sem óculos uma borra se forma exigindo que eu sinta. Sinta o ar batendo em meu rosto, a água molhando as mãos, o beijo que toca a face, os dedos que percorrem o corpo do ser amado.
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Sentir não é verbo, é sentimento. Não se conjuga. Não se sente com o coração. Se sente com o corpo. São os braços que sentem saudades. É a boca que sente a ausência. São os pés que medem a distância. O olfato que percebe o amor, os dentes que mastigam a raiva, os ouvidos que entoam rima e melodia na respiração do sexo. É das coxas que nasce o mundo. Estamos desacostu-mados a sentir. Sentir dá medo. Queremos ser amados, mas não queremos que o outro chegue muito perto. Queremos construir uma vida juntos, mas temos medo de dividir nossas sementes. Somos carentes. Somos abismos. Somos flores com medo de desabrochar. É da beleza a certeza da renovação. Às vezes somos apenas um caule sem brotação, às vezes somos bulbo a espera da cura do tempo, mas um dia teremos de desabrochar. Abrir-se para o mundo. Romper a barreira da pétala e deixar-se sentir o perfume.
É claro que dói nascer. Por isso, tirar os óculos para sentir o mundo faz bem, pois a natureza é mais sábia que nossa mente. Deixar-se invadir pelo verde da grama, pelo amarelo do sol ao meio-dia, pela escuridão da noite sem Lua. Deixar-se ser a via que flui em seu fluxo cotidiano. Ser terra e chuva. Chover nas mãos de quem amamos. Permitir-se encher os pulmões de jasmins e desejar ter um jardim compartilhado. Quando você planta, os pássaros voltam. A natureza nos ensina, que feito crianças, precisamos ter paciência com nossos pés. É devagar que aprendemos a caminhar, e caminhar é a maior revolução que alguém pode fazer. Conseguir ficar de pé. Dar um passo de cada vez. Sentir a consciência que sobe pelas pernas. Tudo de modo muito simples e lento.
Não precisamos ter pressa, precisamos ter coragem de aceitar nosso próprio ritmo. Ouça, há uma valsa que toca neste exato instante, mas para senti-la terás de tirar os óculos também e deixar-se conduzir pelo outro, que quer te tocar, te sentir, te amar, pousar em tua flor. A vida é muito delicada, pisamos de modo muito humano e sem perceber, por medo, corremos o risco de esmagar as centáureas.
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