O mais aterrador na vida é o momento em que começamos a perder a esperança. A confiança se esvai como água entre os dedos, desaparecem os modelos e os pontos de referência. Ficamos soltos no mundo, sem interlocutor e sem aconchego, como numa jaula com leões famintos.
Alguns recorrem à oração, mas até orar foi invadido pelo oportunismo mercantilista da cobiça. Pseudo-igrejas vendem "milagres" e "proteção divina" a granel pela TV, como cerveja para saciar a sede. E, de boa fé, o povão acaba por crer no falsário.
Outros recorrem à ação. Mas na sociedade moderna o caminho para a ação está na política e, aí, basta ver o desvario de Eduardo Cunha, do PMDB e presidente da Câmara de Deputados, para entender que - ao caminhar - cada passo nos afoga no lodo.
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Não é o momento atual que me leva a estas observações. O que chamamos "crise" existe há tempos. Agigantou-se nos últimos 50 anos e nos levou à vulgaridade e à desfaçatez de hoje. A diferença é que, agora, tudo é visível.
Desde que o golpe de 1964 fez da simulação a forma de governar, perdemos gradualmente a capacidade de discernir. O medo de optar por algo "não legal" nos fez cair na vala comum e a propaganda decide por nós. Na vida pessoal, até no amor ou na educação dos filhos, manda o que "está de moda". Na política, repetimos o pregão dos "marqueteiros" alugados a peso de ouro - dinheiro público do Fundo Partidário ou "dádivas" de bancos e grandes empresas.
A correria da sociedade de consumo nos transforma em papagaios repetidores do que nos ensinam a repetir. E nem percebemos!
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Agora, só se fala da "crise" e se cultiva a expectativa da angústia, como se fosse a trama da telenovela das 9.
Se já não bastasse a cínica desfaçatez do presidente da Câmara de Deputados negando $eu$ milhõe$ na Suíça, surgem mais episódios de cinismo explícito. O pedido de impedimento de Dilma está na boca de todos - contra ou a favor - mas o vice Temer segue em silêncio. Não toma posição, apesar de (como candidato) ter sido mudo acompanhante de Dilma. Com o PT e os "alugados", o PMDB partilha o poder. Eduardo Cunha, por exemplo, nomeou (entre outros) o diretor de loterias da Caixa Econômica, o que explica que o povo desconfie dos prêmios milionários da Mega Sena.
Mas o vice se queixa de não ser consultado nas "grandes decisões". Que grandes decisões teve o governo?
Em 1955, quando se votava separadamente para presidente e vice, João Goulart teve 550 mil votos a mais do que o presidente Juscelino Kubitschek. Mas, no governo, não pensou em igualar-se a ele, pois era só seu eventual substituto.
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A política é o espelho público em que a Nação se mira como modelo de comportamento. Assim, não pode virar um jogo oculto de deslealdades ou traições. A deslealdade não aproveita, sequer, a quem se beneficia dela. O desleal não é confiável a ninguém.
Nos períodos em que assumiu a presidência, Temer assinou idênticos decretos de "pedaladas fiscais" pelos quais se pede o impedimento de Dilma. Indago: não devia, pelo menos, dividir responsabilidades?
Entre nós, porém, tudo é inexplicável, difuso ou oculto. E isto gera a desesperança, a não-confiança que nos assola tal qual o zika-vírus. Há uma microcefalia geral que perpassa a política e penetra na sociedade inteira, poluindo nossas vidas tal qual a lama ácida das barragens de minério infesta terras e rios.
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Na França, em 10 dias descobriram os autores dos atentados de Paris. Aqui, quase três anos após a matança de 241 jovens em Santa Maria, os donos da Kiss e da banda recém começam a depor à Justiça.
Não nos organizamos sequer para combater o Aedes Egipti! A microcefalia se intensificou nove meses após a Copa do Mundo e há suspeitas de que o zika-vírus veio na mala de torcedores estrangeiros e se expandiu.
Mas tudo se oculta. Em Brasília, dos 39 deputados da comissão do "impeachment", 15 respondem a processo no Supremo, por crimes de responsabilidade, peculato ou lavagem de dinheiro.
E vão decidir sobre quem nos governará, tal qual o zika-vírus decidirá sobre os cérebros do futuro.
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