Um transtorno mental: o governo peruano causou indignação na comunidade LGBTQIAPN+ ao expedir um decreto sobre acesso a tratamentos de saúde mental que classifica diversas identidades de gênero sob este rótulo.
Grupos de diversidade sexual convocaram um protesto para esta sexta-feira (17) em frente ao Ministério da Saúde, no centro de Lima, para exigir a revogação da norma que, em sua opinião, incentiva a discriminação e a violência contra seus membros.
A manifestação coincide com o Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia.
O protesto foi pacífico e reuniu mais de 200 ativistas, que repetiram lemas pedindo a revogação do decreto controverso.
"O decreto está prejudicando nossos direitos como seres humanos. Estamos indignados porque gera muita violência", disse à AFP Valentina Albújar, candidata a Miss Trans 2024, presente na manifestação.
- O decreto -
Por meio de portaria publicada no dia 10 de maio, o Ministério da Saúde atualizou o Plano Essencial de Saúde (PEAS), uma lista de serviços mínimos aos quais os beneficiários da saúde pública, mista ou privada devem ter acesso.
Desde 2021, este plano inclui as doenças mentais.
Seguindo uma antiga classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS), o governo quis ampliar a cobertura de saúde mental a tratamentos derivados da identidade de gênero, por exemplo, em casos de assédio, terapias de afirmação ou cirurgias de redesignação sexual.
No entanto, a classificação utilizada, conhecida como CID-10, descreve a transexualidade como um "transtorno mental", termo que a própria OMS eliminou em 2022 em uma revisão de seu manual de diagnóstico, em vigor desde então.
"O governo tinha boa intenção, que era ampliar o acesso [à cobertura], mas visibilizou um diagnóstico que não deveria mais ser usado", declarou à AFP Carlos Cáceres, vice-decano de saúde pública da Universidade Cayetano Heredia.
- O que diz o governo? -
O Ministério da Saúde esclareceu que não considera "diversidade de gênero e sexual" como doenças.
"Expressamos o nosso respeito pelas identidades de gênero, e também nosso repúdio à estigmatização da diversidade sexual", afirmou o órgão.
Segundo explicou na mesma mensagem, ao atualizar o PEAS, utilizou a classificação da OMS ainda vigente no Peru à espera da "implementação progressiva" do novo manual de doenças, "como ocorre em outros países".
Um porta-voz do Ministério a Saúde justificou a vigência do decreto, e alegou que sua anulação impediria que os afiliados ao sistema de saúde, sobretudo privados, tivessem acesso a mais serviços de saúde mental.
"O decreto vai ser mantido porque não podemos tirar o direito ao atendimento", disse à AFP Carlos Alvarado, diretor do órgão do Ministério da Saúde responsável por propor normativas de organização e gestão de serviços sanitários.
- O que pensam os grupos de diversidade sexual? -
Apesar do esclarecimento do Ministério da Saúde, as organizações de direitos humanos e de diversidade sexual exigem a revogação da norma.
"Estamos pedindo a revogação deste decreto transfóbico, violento e que vai contra nossas identidades como pessoas trans no Peru", disse à AFP Gianna Camacho, porta-voz da Coordenação Nacional LGBTQIAPN+.
"Não somos doentes mentais, nem temos transtorno mental", disse a ativista.
Em artigo publicado em sua página na internet, a ONG Human Rights Watch (HRW) chamou atenção para os efeitos "deste decreto enviesado e pouco científico".
"Patologizar oficialmente as pessoas LGBTQIAPN+ [...] pode prejudicar seriamente os esforços para melhorar a proteção dos direitos baseados na orientação sexual e na identidade de gênero", alertou a organização.
O Peru não reconhece o casamento ou a união civil entre homossexuais, nem permite que pessoas trans incluam sua identidade de gênero em seus documentos.
- Um receio maior -
Na opinião da comunidade LGBTQIAPN+, a norma contém um risco ainda maior do que o de discriminação.
"Dizendo que estou doente, estão me patologizando e isso é um grande risco porque abre as portas para validar terapias de conversão", disse à AFP o médico e ativista Percy Mayta.
Essas práticas, que as Nações Unidas equiparam à tortura, não são criminalizadas no Peru.
A HRW também acredita que a norma "pode dar legitimidade" às chamadas terapias de conversão e "agravar os problemas de saúde mental enfrentados pelas comunidades LGBT no país".
Diante destes temores, o Ministério da Saúde reforçou que a orientação sexual e a identidade de gênero "não serão submetidas a tratamentos ou atendimentos médicos, nem às chamadas terapias de conversão".
No entanto, para os grupos LGBTQIAPN+, apenas a revogação eliminaria os riscos potenciais.
* AFP