Por Marcus Coester
Empresário, CEO da Aerom Sistemas de Transporte, presidente da AHK Porto Alegre
O Vale do Silício, na Califórnia, se mantém há décadas como paradigma mundial da inovação tecnológica. Apenas o valor de mercado das cinco grandes empresas da área – Apple, Alphabet, Amazon, Facebook e Microsoft – já supera o PIB de muitos países, inclusive o do Brasil. Entretanto, qual a relação entre esse extraordinário ecossistema e o satélite soviético Sputnik 1? Eventualmente, muito mais do que o senso comum imagina.
Em 4 de outubro de 1957, entrava em órbita o primeiro satélite artificial, uma esfera com 83,6 quilos com a simples função de emitir continuamente um “beep” de rádio. Esse singelo sinal, que podia ser sintonizado em solo por qualquer radioamador entre 20MHz e 40MHz, foi o estopim de uma intensa corrida tecnológica que levou, entre outros feitos, ao surgimento do que hoje conhecemos como Vale do Silício.
O “beep” do Sputnik 1 não deixava de ser uma versão cósmica da máquina de propaganda russa e parte do enfrentamento armamentista da Guerra Fria. Aos ouvidos do governo Eisenhower e das autoridades de defesa dos EUA, esse sinal soou como um estrondoso alarme de emergência. A sensação de ter o quintal de suas casas escrutinado por seu principal inimigo, a partir do espaço, trouxe pânico ao mundo ocidental. Quatro anos mais tarde, o cosmonauta Yuri Gagarin se tornaria o primeiro humano a viajar no espaço, estabelecendo, naquele momento, a incontestável supremacia dos soviéticos na corrida espacial.
Enquanto isso, as bases militares da costa do Pacífico dos EUA recebiam massivos investimentos por conta de sua localização estratégica, lembrando que a Califórnia era essencialmente uma região agroindustrial até meados dos anos 1950. As novas tecnologias eletrônicas de radar, aeronavegação e de interceptação de rádio passariam a ser prioritárias no novo jogo que se estabelecia.
A Fairchild Semiconductor, fundada em outubro de 1957, três dias antes do lançamento do Sputnik 1, é considerada por muitos o marco seminal do Vale do Silício. A empresa, baseada em San Jose, foi pioneira no desenvolvimento de circuitos integrados, e seu meteórico sucesso está diretamente relacionado ao setor de defesa. Isso desde seu primeiro contrato, por meio da IBM, a qual forneceu os novos transistores 2N697 para a fabricação do computador do bombardeiro B70. Em poucos anos, a Fairchild contaria com mais de 12 mil funcionários, gerando dezenas de spinoffs, entre elas as atuais gigantes Intel e AMD. A região ficou logo conhecida pela proliferação de fabricantes de semicondutores, o que deu origem ao seu nome.
Fundada em uma garagem de Palo Alto em 1939, a Hewlett-Packard foi outro alicerce importante. O endereço 367 Addison Avenue é considerado, oficialmente, o local do nascimento do Vale do Silício. Como muitas outras empresas do setor, a HP teve importantes contratos com o Departamento de Defesa a partir da Segunda Guerra Mundial, na qual trabalhou nos sistemas de radar e sistemas de detonação de mísseis. A importância do segmento militar para a companhia ficou evidente quando seu CEO e cofundador David Packard foi nomeado Subsecretário de Defesa do governo Nixon em 1968.
Além da Fairchild e da HP, as universidades de Berkeley e Stanford completaram a constelação de partida do Vale. A política científica e tecnológica do governo dos Estados Unidos investiu e continua investindo sistematicamente em programas de pesquisa com suas universidades. Além da formação de engenheiros e PhDs, importantes laboratórios foram implantados como parte de uma bem-sucedida estratégia de defesa nacional pautada no conhecimento de ponta.
Os investimentos em tecnologia de defesa foram apenas uma preparação para o que viria a seguir com o Programa Espacial Apollo. Anunciado pelo presidente Kennedy em 1961, os EUA firmaram o compromisso de colocar um humano na Lua e trazê-lo de volta em segurança, e este compromisso seria cumprido a qualquer preço. A crise dos mísseis em Cuba, em 1962, aumentou definitivamente a pressão sobre essa missão. Ao todo, foram 18 voos espaciais no programa Apollo, sendo os sete primeiros não tripulados. Por fim, em 1969, Neil Armstrong se tornou a primeira pessoa a pisar na Lua, rivalizando o feito de Yuri Gagarin e reposicionando os norte-americanos na corrida espacial.
Durante boa parte dos anos 1960, o programa Apollo consumiu cerca de 10% de todo o orçamento dos EUA, somando-se ao já robusto orçamento de defesa. Esse foi o maior programa de desenvolvimento tecnológico da história da humanidade, e, por consequência, gerou bilionários contratos com a indústria de materiais, componentes, equipamentos e sistemas, além de arrojados investimentos em programas científicos.
Aliados ao possante impulso militar e a uma estratégia de país, há que se reconhecer o mérito dos empreendedores, hackers, cientistas e outros visionários, que, no final, criaram uma nova indústria de alta tecnologia. As tentativas de replicar o soberano Vale do Silício em outras partes de mundo têm se mostrado uma tarefa impossível e, quem sabe, de fato, assim seja devido ao seu contexto absolutamente singular.