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Corpos pelas ruas, insepultos, em Guayaquil, no Equador. Hospitais sem oxigênio no Amazonas, no Brasil. Um lockdown que acabou se tornando o mais longo do mundo, na Argentina. E uma aparente contradição: dois dos países que mais vacinam, Chile e Uruguai, são também os que vivem neste momento alguns dos mais graves surtos de coronavírus em nível global.
A pandemia escancarou as chagas sociais que o escritor uruguaio Eduardo Galeano chamou certa vez de as veias abertas da América Latina. A covid-19 adquiriu nessa esquina do mundo feições particulares. Por avenidas esburacadas, nos trens e metrôs abarrotados e nas favelas onde o distanciamento social é impossível, o Sars-CoV-2 se espalhou rapidamente. Os primeiros 100 mil mortos pela covid-19 na pobre América Latina foram registrados em 24 de junho de 2020. Pouco mais de um mês depois, em 2 de agosto, o número dobrou, chegando a 200 mil. Três meses depois, o contingente dobrou uma vez mais, e as mortes somaram 400 mil, em 2 de novembro. Enquanto foram necessários oito meses para se chegar aos 400 mil óbitos, entre março e novembro, as outras 400 mil mortes ocorreram em apenas cinco meses. Hoje, a região registra mais de 800 mil mortos e 25 milhões de infectados. Cerca de 89% dos óbitos estão em cinco países – Brasil, México, Colômbia, Argentina e Peru.
O populismo característico dos governantes latino-americanos, de direita ou de esquerda, traduzido por vezes em um caudilhismo, protagonizou cenas estranhas aos olhos do mundo: no México, o presidente de esquerda Andrés Manuel Lopez Obrador chegou a dizer que os cidadãos do país não seriam infectados pelo coronavírus porque teriam um gene que os deixaria imunes. Assim, incentivou aglomerações. Hoje, o país registra o terceiro maior número de mortos no mundo, 214 mil, e 2,3 milhões infectados, segundo a Universidade Johns Hopkins. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro, do lado oposto no espectro político de Obrador, também minimizou a gravidade da pandemia, considerou a covid-19 uma “gripezinha”, desdenhou do uso de máscaras e apoiou a cloroquina no tratamento de pacientes com o coronavírus, mesmo sem comprovação científica. No país, são 400 mil mortos e 14,3 milhões de infectados.
Obrador e Bolsonaro são, no entanto, exceções no continente, na opinião de pesquisadores. O professor da ESPM-SP Paulo Ramirez, doutor em Antropologia e mestre em Sociologia, diz que os demais líderes latino-americanos adotaram, em maior ou menor graus, as práticas recomendadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e obedeceram às ponderações dos cientistas.
– O Chile com Sebastián Piñera, a Argentina com Alberto Fernández e até a Bolívia, mesmo em transição de governo (de Jeanine Áñez para o presidente eleito Luis Arce), seguiram o modelo defendido pelos infectologistas. Mesmo onde não houve lockdown rígido, como na Colômbia, havia certo controle sanitário – explica o pesquisador.
Pobreza, subdesenvolvimento, desigualdades sociais e um grande contingente de pessoas que trabalham na informalidade produziram uma tragédia anunciada na América Latina, antes mesmo de o coronavírus cruzar o Oceano Atlântico vindo da Europa e da Ásia, onde surgiu, na China. A questão era como lidar com ela.
– Os demais países da região seguraram o máximo que puderam suas populações em casa. Por isso, têm números de mortos bem menores do que o Brasil, mesmo em relação à proporção da população. No Brasil, isso não foi feito. Os voos não foram suspensos no primeiro momento, não houve uma política sanitária nacional, não se viu uma propaganda na TV do governo federal para que as pessoas ficassem em casa e usassem máscaras. Esse é o grande problema dos países que seguiram o negacionismo. São as nações que têm os maiores números de mortos hoje – argumenta Ramirez.
Daniela Campello, professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (Ebape), da Fundação Getulio Vargas (FGV), tem avaliação semelhante. Ela entende que os governos de Argentina, Uruguai, Peru e Colômbia agiram em sintonia com a maioria das autoridades mundiais no esforço de contenção do coronavírus, seguindo as orientações dos cientistas. Em nível doméstico, buscaram coalizões com a oposição para enfrentar “o inimigo externo”, no caso o vírus.
– Em termos de resposta, o padrão foi, no início, juntar oposição e governo e tentar de algum modo dar uma resposta concertada à pandemia – salienta.
O Chile é um exemplo. Antes de o coronavírus surgir em Wuhan, o país era sacudido pelos maiores protestos desde a redemocratização. O levante popular contra desigualdades sociais pressionava o governo a mudanças na educação e na Previdência, áreas que, por décadas, serviram de modelo aos liberais no subcontinente, mas que deixaram parte da população excluída. A pandemia não melhorou a popularidade do presidente Piñera, mas o governo que era contestado virou vitrine internacional quando a vacina contra a covid-19 foi descoberta. O país aproveitou suas relações internacionais para acelerar a importação e, hoje, aplica 74,93 doses por cem habitantes, mais do que Reino Unido (69,3), Estados Unidos (69,49), e do que a maioria dos países da União Europeia (UE), na faixa dos 30 por cem habitantes.
Na opinião de Daniela, de uma forma ou de outra, os governos que estão no poder durante a pandemia serão punidos nas urnas nas próximas eleições. No Equador, país que exibiu ao mundo cadáveres nas ruas devido ao colapso do sistema funerário de Guayaquil, a população elegeu em segundo turno um banqueiro, Guillermo Lasso, exorcizando o “correísmo”, corrente política do ex-presidente Rafael Correa e da qual Lenín Moreno, o atual presidente, fora herdeiro até romper com o passado.
No Peru, a pandemia desembarcou quando a nação já vivia crise política. O país, que registra 59,7 mil mortos pela covid-19, chegou a ter mais mortos de covid-19 por habitante no mundo. Fechou escolas e fronteiras, fez rígida quarentena, mas as medidas não foram suficientes em parte devido à desigualdade que “hermana” a todos no subcontinente. As pessoas precisavam voltar a trabalhar. Uma cena que ficou foi a das filas de cidadãos em busca de tanques de oxigênio no mercado ilegal. A situação chegou a ser tão agonizante que os médicos pediam para os parentes levarem aos hospitais seus próprios tanques para os familiares baixados.
O país teve cinco presidentes envolvidos com corrupção. No segundo turno, a ser realizado em 6 de junho, não há sombra de atuais governantes: a Casa de Pizarro será disputada entre Pedro Castillo e Keiko Fujimori, filha do ex-presidente Alberto Fujimori.
– A gente verá (em futuros pleitos), de uma forma geral, um impulso antigoverno, de frustração, independentemente do fato de que a pandemia afetou a todos, mesmo alguns governos se saindo melhores do que outros – pontua Daniela.
Enquanto nos palácios de governo autoridades tentam manter reputações a salvo da covid-19, nos hospitais a situação é grave. O Chile voltou a confinar mais de 80% de seus 17 milhões de habitantes e fechou as fronteiras para os vizinhos. A Argentina também suspendeu voos regulares com Chile, Brasil e México. Os casos estão aumentando em Uruguai, Venezuela, Peru e Paraguai.
O crescimento do número de doentes no Uruguai chama a atenção porque o país foi exemplo mundial de contenção do coronavírus na primeira onda. De março a dezembro, 181 pessoas morreram de covid-19 no Uruguai, o que representava à época uma taxa acumulada de 50 mortes por milhão, a mais baixa entre as democracias da América do Sul. Mas, a partir de março de 2021, houve uma explosão de contaminações, que colocaram a pequena nação no topo do ranking: a maior taxa de novas infecções por coronavírus no mundo. No total, 1,13 mil novos casos por dia a cada milhão de habitantes. O avanço fez com que o governo impusesse restrições de circulação, fechando escolas, repartições públicas e academias.
Ironicamente, Uruguai e Chile são os países que mais vacinam na América Latina. O primeiro aplica 73,92 doses para cem habitantes. O segundo, 46,13. Como explicar, então, seus surtos de covid-19?
Segundo especialistas, o número de pessoas completamente imunizadas ainda está longe de proporcionar a Chile e Uruguai a chamada imunidade coletiva. As férias de verão e o cansaço da população com as medidas restritivas levaram a um relaxamento no uso de máscaras e álcool em gel e na observância do distanciamento social. Além disso, houve a disseminação da variante brasileira do vírus, a P.1. A nova cepa representa 90% das amostras analisadas no departamento de Río Negro, 80% em Rivera, separado por uma rua de Santana do Livramento, e 60% na capital, Montevidéu, e em Colonia e Soriano.
– Se você flexibiliza a entrada de cidadãos de um país que tem uma taxa de transmissão muito alta, você praticamente está jogando fora o serviço que fez anteriormente. E, com a variante brasileira entrando em um país sem imunidade, você não consegue contê-la – afirma o epidemiologista e infectologista Marcio Sommer Bittencourt, do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP).
No Uruguai e na Argentina, os presidentes esmeraram-se em apoiar recomendações de infectologistas e epidemiologistas. Mas atuaram de forma diferente em relação à circulação da população. No Uruguai, as quarentenas foram evitadas a todo custo, com o governo do presidente Luís Lacalle Pou apelando ao bom senso da população. Já na Argentina as medidas foram extremas. O presidente Alberto Fernández implementou lockdown rigoroso de março a setembro de 2020. A crise econômica se aprofundou, mas, por um tempo, o governo conseguiu manter a curva de mortos e infectados baixa. De janeiro para cá, a situação saiu do controle. Hoje, a Argentina contabiliza 62 mil óbitos e 2,8 milhões de infectados. No último dia 14, o governo anunciou toque de recolher das 20h às 6h na Grande Buenos Aires e o fechamento de comércio e restaurantes. As aulas ficariam suspensas até 30 de abril.
– Fernández, no ano passado, conseguiu fazer o lockdown e manteve a população dentro de casa, e os níveis de contaminação na Argentina chegaram a estar entre os menores da América do Sul, mas o problema é que o país está em uma crise prolongada. Ele tem um governo mais popular, intervencionista na economia, que aprofundou o endividamento para sustentar sua população – explica Ramirez.
A piora do quadro provocou rixas internas, que, em um primeiro momento, haviam sido minimizadas. Fernández, herdeiro do kirchnerismo, de esquerda), é criticado pela oposição conservadora por ter adotado restrições rígidas demais. Do outro lado do Rio da Praia, no Uruguai, Lacalle Pou (do Partido Nacional, direita) é atacado pela esquerda por ter sido “menos” restritivo. O argentino viu sua popularidade passar de 67% para 28% em um ano, e os “cacerolazos” voltaram a ecoar das janelas em Buenos Aires. Já Lacalle Pou tinha 58% de aprovação, manteve relativo bom desempenho, mas também enfrenta protestos, ainda que virtuais, por meio da hashtag UruguayCacerolea (“Uruguai bate panela”).
Ramirez divide os governantes e suas ações em duas categorias: um grupo com tendências neoliberalizantes, que focaram na manutenção da economia, caso do Brasil, e outro que privilegiou as medidas restritivas, com ênfase nas ações sanitárias, mas com o aumento da dívida pública.
– Na Argentina, o dinheiro foi acabando e as dívidas foram aumentando. O Chile pediu ajuda ao Fundo Monetário Internacional (FMI), as pessoas precisam voltar a trabalhar. A gente consegue ver uma diferença em relação aos EUA e aos países da Europa, nos quais governos aumentaram a dívida pública para dar um respaldo para que a população ficasse em casa e os comércios fossem fechados. Foram os casos de Reino Unido, Alemanha e França, países que mostraram que têm bastante gordura para queimar em termos de dívida pública e recursos presentes – pondera Ramirez.
Na América Latina em geral e no Brasil em particular, esses recursos se esgotaram no final do ano passado.
Em 2020, América Latina e Caribe foram a região mais prejudicada do mundo em termos econômicos pela covid-19, conforme Martin Rama, economista-chefe para a região do Banco Mundial (Bird). No relatório “Renewing with the Growth” (Renovando com Crescimento), ele afirmou que a região foi mais impactada porque teve de enfrentar um maior tempo de quarentena. Segundo a organização, América Latina e Caribe registraram queda de 6,7% do PIB em 2020. Mas devem crescer 4,4% em 2021.
A contração causada pela pandemia teve custos econômicos e sociais. A taxa de desemprego aumentou e a pobreza disparou, embora, em alguns países, como o Brasil, o uso massivo de transferências sociais tenha contribuído para amortecer o impacto da crise, segundo o Bird.
Os governos não tiveram alternativa a não ser acelerar a vacinação. Só que esbarraram em outros entraves. A distribuição das doses ocorre a conta-gotas porque os laboratórios não conseguem atender às demandas e porque os países periféricos do sistema capitalista recebem as vacinas por último – sem falar da inação das autoridades, de forma geral.
Com exceção de Chile e Uruguai, todos os demais países patinam em suas campanhas de vacinação. O Brasil demorou para arrancar. Na quarta-feira (28/4), registrava 18,9 doses para cem habitantes, ocupando o terceiro lugar na América Latina. Em Paraguai, Equador e Peru, a situação é pior. Nenhum supera as cinco doses para cem habitantes. Panamá, Costa Rica e República Dominicana estão um pouco melhores.
A falta de doses se deve a vários fatores: países ricos obtiveram a maioria das vacinas disponíveis, governos demoraram nas negociações e alegam dificuldades para fechar acordos. O consórcio Covax, da OMS, para distribuir imunizantes a nações pobres, é prejudicado por problemas de produção e falta de apoio de nações desenvolvidas. Decisão recente da Índia, envolta em seu próprio pandemônio da covid-19, de limitar as exportações, piorou o cenário.
Segundo a lógica de que país que mais vacina retomará primeiro a economia, tudo indica que as nações da região ficarão para trás. Neste mês, o FMI alertou que a distribuição lenta e o ressurgimento de casos ofuscam as perspectivas de recuperação econômica de curto prazo na América Latina. Mas até que ponto pobreza, informalidade e desigualdade contribuíram para a região atrasar a reação à chegada do vírus?
– O trabalho informal é uma característica dos países subdesenvolvidos, periféricos. O problema é que a gente começa a ver uma segunda e terceira ondas aumentando pelas incapacidades dos governos de países mais pobres de manter sua população dentro de casa. E talvez a mortandade seja maior. Em agosto ou setembro, o Brasil poderá superar os EUA em número de mortos – prevê Ramirez.
Para Daniela, a pandemia pegou o continente em declínio econômico, após o “boom das comodities” na primeira década do século 21.
– Se a pandemia chegasse em 2010, talvez fosse diferente. Havia governos fortalecidos, era um período de otimismo. Seria difícil de qualquer maneira, mas o problema é que, agora, pegou a região em uma descendente. As coisas não estavam bem, as economias vinham caindo em desempenho e de repente chegou a pandemia – salienta. – Minha preocupação é com a democracia. O apoio a esse tipo de regime cai muito com a crise econômica, e vamos experimentar algo grande nesses próximos tempos. Temo que estejamos mais expostos a outras aventuras que não sejam democráticas, porque o nível de frustração vai ser alto.
Na opinião de Bitencourt, apontar a desigualdade como causa principal da aceleração da pandemia na região seria um equívoco.
– Há muitos países com condições socioeconômicas, ambiente de trabalho e fragilidades sociais significativas em vários lugares do mundo, mas que tiveram capacidade de intervenção melhor. Até o Paraguai, apesar de a situação estar piorando, teve um resultado muito menos pior do que o brasileiro. E países muito mais pobres tiveram medidas muito bem implementadas, como o Vietnã e a Tailândia – ilustra.