Por Rafael L. Kasper
Escritor, doutor em filosofia (UFRGS) e guia turístico em Berlim
Lembramos as imagens de 9 de novembro de 1989: a euforia dos reencontros, os brindes de cerveja, as marteladas no concreto naquela noite fria, há 30 anos, quando o Muro de Berlim caiu. Mas esquecemos que o muro não caiu (para remover 155 quilômetros de cimento e ferro, a prefeitura usou escavadeiras), que nem todos os berlinenses estavam eufóricos (2 mil alemães ocidentais de esquerda protestaram) e que a reunificação não aconteceu em uma noite, mas em um longo processo de decisões, demandas e memórias muitas vezes contraditórias.
Trabalhando como guia em Berlim e estudando Hannah Arendt há anos, penso na relação entre objetividade histórica e as opiniões ensejadas por essa objetividade (dica: leia Verdade e Política, de Arendt). Os objetos são os mesmos, mas podem ser vistos e imaginados por muitos ângulos. O Muro de Berlim parece uma estrutura simples, sem cores nem nuances, simplificada nas narrativas da Guerra Fria – fomos treinados a ver ali uma linha entre capitalismo e comunismo, entre liberdade-progresso e opressão-atraso.
Para evitar mal-entendidos: eu não gostaria de morar em Berlim oriental. A cada 10 pessoas nos meus tours, pelo menos uma seria informante da Stasi. Eu não gostaria de estar numa comunidade na qual pessoas são assassinadas quando tentam sair dela. Mas isso não me impede de tentar entender, por exemplo, a Ostalgie (“lestalgia”, a nostalgia que muitos sentem da vida no Leste antes de 1989), a transformação de igrejas, nos anos 1980, em ilhas de liberdade, onde jovens imprimiam jornais clandestinos e organizavam shows de rock com ajuda de padres, e a liberdade sexual no Leste, onde se criou a “cultura do corpo livre” (nudismo), o casamento deixou de ser importante e a mulher trabalhadora, independente, passou a ser norma, não a exceção.
A linha entre fatos de opiniões não é um muro. A nomeação de fatos pode ser disputada por ideologias incompatíveis. O Muro era chamado na Alemanha Oriental de “proteção antifascista”. A construção simbólica do país começara pela autodenominação de “democracia” (República Democrática Alemã) – no imaginário comunista, apenas o partido poderia implementar uma democracia efetiva. No lado ocidental, a República Federal da Alemanha acusava a Stasi e o Muro de serem instrumentos stalinistas e, portanto, totalitários, próximos do nazismo. Na realidade, a própria RFA comportou milhares de antigos nazistas, muitos dos quais ameaçaram jovens que iniciaram o debate sobre os “assassinos entre nós”, nos anos 1960.
A reunificação alemã liberou o passado das bolhas ideológicas criadas nos dois lados do Muro. No plano político, o novo parlamento decidiu rememorar de forma ampla o passado, buscando no abismo do genocídio um chão comum, uma realidade supra-ideológica e suprapartidária, inegável na sua factualidade básica.
No plano historiográfico e interpretativo, o passado foi apropriado em documentários, livros, obras de arte. Ultrapassando as categorias da Guerra Fria (comunismo versus anticomunismo; fascismo versus antifascismo), além das disputas entre grupos antagônicos, o passado pôde então aparecer como catástrofe humanamente causada – em grande parte, pelo povo alemão.
Por mais conflitantes que sejam as opiniões na Alemanha hoje, poucas pessoas questionam as dores da violência organizada na guerra, poucas negam o crime de destruição dos etnicamente diferentes, poucas ignoram a opressão de populações em fronteiras rígidas e ideologicamente seladas.
Na frente do Parlamento, lemos a inscrição “Ao Povo Alemão”, e eu pergunto: o que é o povo alemão? Muitos viajantes chegam a Berlim com ideias essencialistas sobre a Alemanha (ordem, eficiência, cabelos claros), como se um país fosse um organismo natural, e não o resultado de percursos históricos complexos. Então, eu lembro do novo aeroporto de Berlim, cujas obras estão há oito anos atrasadas, lembro os milhares de turcos-alemães que ajudaram a reconstruir o país, e lembro as tribos germânicas, que não tinham divisões burocráticas enviando cartas com números da receita federal.
Heinrich Heine disse aos nacionalistas que ele empunharia a bandeira alemã se ela fosse o símbolo de uma “humanidade livre”. Hoje, nacionalistas exibem suas bandeiras, em varandas de Berlim, como símbolos xenófobos. A questão sobre o que é a Alemanha, o que a Alemanha pode ser, é uma tarefa histórica aberta, e o debate sobre suas contradições, suas regiões e seus grupos, suas ideias de futuro, transcorre na abertura democrática. Mas a questão sobre o que foi a Alemanha não está aberta. O passado está estabelecido. Em Berlim, a objetividade de muros, paredes cravejadas por estilhaços, estátuas e centros de documentação torna o passado visível. Informa as possibilidades das experiências futuras.
Assim, por mais conflitantes que sejam as opiniões na Alemanha hoje, poucas pessoas questionam as dores da violência organizada na guerra (principalmente quando visitam a Pietà, de Käthe Kollwitz, carregando seu filho, um soldado morto), poucas negam o crime de destruição dos etnicamente diferentes (principalmente se tropeçam numa das pedras colocadas por G. Demnig na frente do último endereço de vítimas do nazismo), poucas ignoram a opressão de populações em fronteiras rígidas e ideologicamente seladas (principalmente se passam por um dos fragmentos do Muro).
Numa época em que fatos e opiniões borram-se um no outro, em que a política é percebida como luta entre grupos incomunicáveis e em que o direito de falar sobre a realidade é confundido com o direito de fabricar realidades convenientes a cada grupo, a história recente da Alemanha, com um presente fortemente ancorado no passado, é um exemplo – no que tem de pior e de melhor.