Na primavera de 1990, o estudante alemão Stephan Hoffman, 29 anos, e um amigo, deixaram Frankfurt de carro para uma aventura por um mundo até então pouco conhecido e prestes a desaparecer. O primeiro destino seria Leipzig, na então República Democrática Alemã (RDA). Depois, eles seguiriam até Berlim Oriental, onde, seis meses antes, o Muro fora derrubado a marretadas, ato inaugural de uma frenética sucessão de fatos históricos que culminaria com o colapso do império soviético e o fim da lógica bipolar da Guerra Fria, que, por mais de quatro décadas, pautou as relações políticas, econômicas, sociais e culturais globais. Na altura de Vechta, os dois chegaram a um posto de fronteira onde os guardas tentavam manter o arremedo de autoridade que se liquefazia a cada dia. Houve poucos questionamentos, Stephan recebeu no passaporte um dos últimos carimbos da RDA e, apesar da cara de poucos amigos dos agentes, eles passaram sem problemas para o lado comunista. Os dois levaram quase o dia inteiro na estrada para chegar até Leipzig. Depois, tomaram o rumo Norte, para Berlim. Stephan, hoje com 59 anos, lembra a primeira impressão do mundo socialista que se descortinava.
– Era muito cinza. A arquitetura não tinha cores – conta ele, hoje diretor do Instituto Goethe em Porto Alegre.
Mais de uma década depois do fim do Muro, o turista que subisse na antiga torre de TV da Alemanha comunista em Alexanderplatz teria essa mesma impressão: se virasse a cabeça para o lado oriental, observaria prédios com desenho arquitetônico uniforme, em cores gris. Se voltasse o olhar para Oeste, a vista seria tomada pelas luzes de néon, a imponência de arranha-céus e painéis de propaganda. Antes, a própria fachada ocidental do Muro era grafitada, em franco desafio às autoridades do outro lado, que consideravam a barreira parte de seu território – portanto, o simples desenho no Muro tinha, nos tensos anos de Guerra Fria, potencial para provocar um conflito nuclear.
– Uma vez fui até o Muro. Era um susto. Uma visão de concreto. Do lado de Berlim Ocidental, era cada vez mais usado como espelho de liberdade. Por isso, o pintavam. Mas, até o último dia, o governo da Alemanha Oriental dizia que era sua segurança contra o capitalismo – lembra Stephan.
O estrangeiro que ainda hoje viaja a Berlim busca no chão, nos guias e no Google Maps marcas do passado de uma cidade que foi laboratório vivo da decisão dos vencedores da Segunda Guerra Mundial. Com Hitler derrotado e morto, a Alemanha – e Berlim – fora dividida em setores de interesse norte-americano, francês, britânico e russo. Com o mundo ideologicamente rachado ao meio entre capitalistas e socialistas, em 1961 as autoridades ligadas ao Kremlin que governavam o setor oriental iniciaram, da noite para o dia, a construção de uma barreira para evitar a fuga da população para o outro lado. Primeiro, a divisão foi feita com arame farpado. Depois, com concreto armado. E, por fim, com a inclusão de uma complexa “zona da morte”, que compreendia um aprimorado aparato de segurança com torres, cães e guardas que se estendia por 106 quilômetros e um muro mais encorpado que chegava a 3,6 metros de altura. Grosso modo, é como se Porto Alegre fosse dividida ao meio com uma barreia de concreto na altura da Avenida Ipiranga. De uma hora para a outra, famílias que moram na Zona Norte não poderiam jamais se encontrar com quem vive ao Sul.
Em Berlim, até a linha do metrô fora dividida – na famosa Friedrichstrasse, com uma parede no túnel onde passavam os trens. Segundo dados oficiais, no total, 327 pessoas morreram na fronteira entre as duas Alemanhas. Associações de vítimas acreditam que esse número é inferior à realidade.
A queda do Muro, em 9 de novembro de 1989, deu início a um processo de reunificação da Alemanha, finalizada em 3 de outubro do ano seguinte – um pouco antes da viagem de Stephan e do amigo. Porém, mesmo hoje, 30 anos depois do fim da barreira, os próprios alemães admitem que diferenças persistem entre um e outro naco de terra outrora dividido.
– Percebe-se a diferença. A Alemanha Oriental é menos povoada. Depois da reunificação, muitas pessoas mudaram do lado oriental para o ocidental – compara Stephan.
A percepção é amparada pelas estatísticas. Dos 83 milhões de habitantes da Alemanha hoje, apenas 16,2 milhões (19,5%) moram no velho lado Leste do país. Em quase todos os quesitos, os antigos ossis (habitantes do Leste) saem perdendo: o desemprego é mais alto (6,9% contra 4,8%), o salário médio, mais baixo (2,7 mil euros contra 3,3 mil euros) e a renda per capita é menor (11,9 mil euros contra 23,2 mil euros). Por tudo isso, mesmo três décadas após o muro de concreto vir abaixo e dele emergir uma das maiores potências econômicas do planeta, há fissuras sociais visíveis que fazem com que os cidadãos da antiga Alemanha Oriental sintam-se de segunda classe em relação aos wessis (moradores do Oeste).
– Há muitos muros na Alemanha ainda hoje. O Leste e o Oeste não têm o mesmo padrão de desenvolvimento econômico e o mesmo nível de renda. A diferença é sutil, mas existe – explica o doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS e professor de Relações Internacionais da ESPM-Sul Roberto Uebel.
As diferenças refletem-se na política. No Leste, que foi socialista, crescem movimentos de extrema-direita, cujo principal representante é o partido Alternative für Deutschland, (AfD), hoje a terceira força política do país – nas eleições de 2017, conquistou 12,6% de votos e ficou com 94 das 709 cadeiras do Bundestag (parlamento). Criada em 2013, a legenda, com facções neonazistas em seus quadros, conseguiu seus melhores resultados no Leste, onde já tinha entre 20% e 30% dos votos, enquanto no Oeste consegue, em média, cerca de 10%. O partido cresceu explorando o ressentimento de parte da população com a política da chanceler Angela Merkel (da União Democrata Cristã, CDU) de receber 1 milhão de refugiados em 2015, no momento em que a fortaleza Europa se fechava e a maioria dos governos dizia “não” à onda migratória. Os partidos tradicionais e a antiga esquerda comunista estão em queda, e a islamofobia, em crescimento.
Na opinião de Anja Czymmeck, diretora da Fundação Konrad Adenauer, esses 30 anos desde a queda do Muro de Berlim mostram que promessas não cumpridas podem gerar expectativas exageradas e culminarem em decepção.
– São principalmente as expectativas frustradas de muitos cidadãos do Leste que contribuem para o forte crescimento do partido populista de direita, a AfD, o que representa um novo desafio para a democracia liberal 30 anos após a Revolução Pacífica – afirma.
Há muitos muros na Alemanha ainda hoje. O Leste e o Oeste não têm o mesmo padrão de desenvolvimento econômico e o mesmo nível de renda. A diferença é sutil, mas existe.
ROBERTO UEBEL
Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS e professor de Relações Internacionais da ESPM-Sul
Movimentos antissemitas também são mais comuns no Leste. Em 9 de outubro, um alemão de 27 anos, originário do Estado de Saxônia-Anhalt, tentou invadir, disparando com uma arma semiautomática, uma sinagoga em Halle onde estavam 80 pessoas rememorando o Dia do Perdão, data sagrada para os judeus. Após não conseguir entrar, afastou-se do local andando e matou uma mulher que cruzou seu caminho. Depois, abriu fogo contra um restaurante turco, assassinando mais uma pessoa. Ao ser preso, confessou motivações racistas.
Esse é um paradoxo da Alemanha pós-Muro. Conciliar o espírito de um dos países mais democráticos e liberais do planeta com dilemas de segurança e ascensão de grupos xenófobos. A força da Alemanha atual, locomotiva da Europa, está justamente em não esconder suas fragilidades. Berlim exorciza a cada esquina, a cada museu e em cada memorial fantasmas de seu passado, como o nazismo, o Holocausto e o regime totalitário socialista. Lembrar é uma forma de não repetir.
– Hoje, a Alemanha está no coração da União Europeia. Pela primeira vez na história, o país está cercado só por nações e aliados amigos. Todos eles são democracias em funcionamento – comemora o cônsul da Alemanha em Porto Alegre, Thomas Schmitt.
Na opinião de Uebel, essa política de boa vizinhança tem raízes no aprendizado com o passado sombrio. Hoje, o país, a despeito de grupos minoritários, tem uma política oficial de tolerância com diferentes religiões e orientações sexuais. Também mantém fortes financiamentos em pesquisa e é exemplo de investimento em tecnologia. Não tem forças armadas poderosas como França e Reino Unido e também não dispõe de armas atômicas. Ao contrário, prega o fim das usinas nucleares, mantém forte preocupação ambiental e defende uma mudança de matriz energética por fontes renováveis.
Há muitas barreiras físicas no planeta atualmente. Muitas delas não são fáceis de superar. E algumas até fazem sentir seu propósito protetor. O problema não é sua existência, mas sua justificativa.
THOMAS SCHMITT
Cônsul da Alemanha em Porto Alegre
– A Alemanha é o Estado do futuro: evita o choque de civilizações, preza pelo diálogo e pela diplomacia, mas, ao mesmo tempo, se posiciona internacionalmente. Não é um ator passivo – avalia o professor Uebel.
No século 21, entretanto, o sonho de um mundo sem muros como o que dividiu Berlim está longe. Calcula-se que o planeta tenha hoje 71 barreiras intransponíveis, que somam 40 mil quilômetros de extensão, equivalente à circunferência da Terra. Segurança e retomada de identidade são as expressões preferidas por autoridades que reivindicam essas construções – os mesmos argumentos usados pela Alemanha comunista que erigiu o Muro nos anos 1960. A maioria das barreiras está no continente asiático, como entre Coreia do Norte e do Sul – vista como a última fronteira da Guerra Fria –, mas também há divisões no Oriente Médio, entre Israel e palestinos, e no continente americano, nos planos já em andamento de Donald Trump de ampliar a barreira que separa Estados Unidos e México. Uebel vê nas construções o choque de civilizações teorizado pelo cientista político norte-americano Samuel Huntington.
– São choques de pensamentos diferentes, de modelos políticos conflitantes, que não casam com a ideia que a gente preconizava nos anos 1990, com a queda do Muro e a reunificação. Imaginava-se um mundo unido, uma aldeia global nas relações internacionais. Eu vejo algo que não se concretizou – diz Uebel.
Em 1989, o povo alemão dos dois lados aproveitou uma situação histórica, que nem sempre se repete, na opinião do cônsul alemão.
– Essa janela de oportunidade não surge com frequência. Com certeza, há muitas barreiras físicas no planeta atualmente. Muitas delas não são fáceis de superar. E algumas até fazem sentir seu propósito protetor. O problema não é sua existência, mas sua justificativa – pondera Schmitt, que cresceu na fronteira da Alemanha com França e Luxemburgo.
Naqueles dias de novembro de 1989, jovem estudante de francês, ele estava na cidade belga de Spa, em um curso de idiomas. Pela TV, descobriu que algo importante ocorria em Berlim. Mais: soube que outros colegas de curso haviam deixado as aulas espontaneamente e pegado um trem para a cidade.
– Quando voltaram para Spa, três dias depois, mostraram fotos de si mesmos dançando na parede caída – conta.
Schmitt explica que, mais do que a queda do Muro, outro momento significou, para ele, o fim das fronteiras europeias – a criação do Espaço Schengen, quando os controles fronteiriços caíram entre Alemanha, França e outros países europeus em 1º de janeiro de 1995. Eram suas próprias fronteiras desde a infância e a pá de cal definitiva em uma Europa dividida pela Cortina de Ferro.
– Fiz minha primeira travessia gratuita de fronteira entre a Alemanha e a França. Foi muito emocionante. Esses dois eventos tinham uma coisa em comum: as fronteiras caíam, as famílias se reuniam novamente e os inimigos se tornavam amigos. Atualmente, meu irmão mais novo vive na França, a 500 metros da fronteira alemã. Meu apartamento particular em Berlim está localizado no antigo Leste, a 500 metros da antiga fronteira também. Acho isso ótimo – comemora.
Em tempo: o trecho que Stephan e o amigo fizeram, entre Frankfurt e Leipzig, na primavera de 1990 e que durou quase seis horas, hoje pode ser percorrido em três horas e 10 minutos de trem – ou em quatro horas de carro. Não há, claro, mais fronteiras, checagem, guardas ou... muros.