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O filme começa com uma professora russa ensinando lições de economia aos alunos. É 2005. Ela explica como, 14 anos antes, com o fim do comunismo, deu-se a partilha da propriedade estatal. Foi quando milionários adquiriram campos de petróleo e gás, minas de ouro e bancos.
– Alguém sabe como? – pergunta a professora.
– Naquela época, podia-se fazer montes de dinheiro do nada – responde um aluno.
Sim, assente a professora, acrescentando:
– Havia também grupos criminosos que se misturavam com autoridades. Ao fazerem isso, adquiriram seu capital inicial.
Nesse ponto, aparece na tela a inscrição: "Meados da década de 1990".
Na cena seguinte, dois matadores profissionais roubam cinco quilos de heroína – o tal capital inicial – e fogem para Moscou. Na cidade, trocam jaquetas de couro e pistolas por ternos escuros e empregos na burocracia do Kremlin.
O filme chama-se Zhmurki, ou O Blefe do Homem Morto, de Aleksei Balabanov, e é descrito pelo jornalista David Remnick no livro O Túmulo de Lênin – Os Últimos Dias do Império Soviético (Companhia das Letras) para ilustrar a Rússia corrupta que emergiu após décadas de regime comunista.
Hoje, 26 anos depois do colapso soviético, pintar o país a partir de assassinos profissionais travestidos de funcionários públicos seria um exagero. Tampouco a Rússia que espera as delegações para a Copa do Mundo de 2018 é caótica e violenta.
Andar por Moscou, a 12,6 mil quilômetros de Porto Alegre, ajuda a romper estereótipos. A temperatura em junho, quando o Grupo RBS esteve por lá, ronda os 20ºC. A gigantesca cidade de 11 milhões de habitantes vive um momento de transição com a avassaladora chegada da contemporaneidade. O mausoléu de Lenin, na Praça Vermelha, sua estátua na entrada do principal estádio da Copa, o Luzhniki, a abundância de museus, prédios históricos e a preservação de patrimônios que representam o que se viveu nas últimas décadas – tudo isso convive com símbolos do capitalismo, como lanchonetes McDonald's e lojas Prada, Lacoste e Dior. Carros importados circulam aos montes pela região central da cidade. Também são ilimitadas as alternativas de lazer. Uma caminhada pela Rua Pokrova dá uma ideia do novo momento: há redes internacionais de restaurantes, cafés charmosos e muito movimento. Em um megaempreendimento, com hotel, flats e shopping, está localizado o badalado Sixty, um restaurante no 60° andar de uma torre com vista para o Rio Moscou.
O estilo de vida consumista é para poucos em um país com 144 milhões de habitantes. Mas representa uma mudança de rumo dramática exatamente um século depois da chegada ao poder dos bolcheviques, na Revolução de 1917, que implantara o socialismo real.
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Com o fim da União Soviética (URSS), em 1991, a Rússia começou um processo de transformação política, com a criação de instituições aos moldes das democracias ocidentais: a ruptura brutal de um sistema de economia planificada para o capitalista. Muitas pessoas perderam as poucas garantias dadas pelo regime e passaram a enfrentar uma dinâmica de mercado livre, com a necessidade de procurar emprego, dada a privatização de bens que, antes, eram todos do Estado. Em entrevista à revista alemã Der Spiegel, em 2008, o escritor russo Aleksandr Soljenítsin referia-se a uma "década perdida":
– Se você olha a situação com imparcialidade, vê que houve um declínio do padrão de vida na década de 1990, que afetou três quartos dos russos, e tudo isso sob a bandeira da democracia. Não é de admirar que a população não mais cerre fileiras por essa bandeira.
A Rússia entrou à força no regime capitalista, mergulhou em duas guerras na Chechênia, testemunhou a queda das liberdades civis, viveu um colapso econômico (em 1995), foi sujeitada à senilidade de Boris Yeltsin (presidente entre 1991 e 1999), ao autoexílio de Mikhail Gorbachev (que havia sido o líder do país de 1985 a 1991) e à apoteose de Vladimir Putin (no póder desde 2000, como presidente ou primeiro-ministro).
– O que aconteceu permite a Putin e aos demais lideres das elites pintar a democracia liberal de forma muito negativa. Muita gente hoje em dia apoia o sistema politico atual na Rússia, que é mais fechado, porque o que conhecem da democracia liberal está fortemente associado à década de 1990, quando sofreram muito. O nível de vida dessas pessoas, hoje, mesmo que não vivendo em uma democracia plena, é melhor do que aquele da década de 1990, quando existia democracia – avalia o cientista politico Vladimir Rouvinski, diretor do Laboratório de Política e Relações Internacionais da Universidade Icesi, da Colômbia.
Também especialista em Rússia, o professor de Relações Internacionais da ESPM/Sul Fabiano Mielniczuk afirma ser difícil conceituar um país que não se enquadra no padrão de desenvolvimento político-econômico ocidental dos últimos séculos a partir de categorias que conhecemos no Ocidente, como autoritarismo ou democracia liberal:
– Desde a emergência da Rússia enquanto Estado, a partir da libertação do domínio Mongol, no século 15, a experiência democrático-liberal que os russos possuem se limita aos 25 anos posteriores ao fim da URSS. Por isso, a Rússia de hoje é associada a um regime com elevado grau de centralização, o que a afastaria da definição tradicional de democracia liberal. O problema é saber até que ponto a comparação é justa, pois pressupõe, mesmo que de maneira implícita, que o padrão utilizado para mensurar o grau de democracia seja o funcionamento político de países com mais de 200 anos de história democrática. Vejo a Rússia como um país que busca redefinir sua identidade, sem a aceitação acrítica do modelo democrático-liberal.
Democracia, sim. Mas controlada
Para alguns especialistas, a Rússia vive hoje uma espécie de teatro de democracia. Uma autocracia eleitoral: com eleições de cartas marcadas, sem espaço para a oposição. Para outros, trata-se de uma democracia não liberal, uma vez que não se enquadra em um regime autoritário, como os de Cuba e Coreia do Norte. Nas ruas, as pessoas dispõem de liberdades, mas sua participação na política é limitada. O poder se mantém há 17 anos nas mãos de uma elite de São Petersburgo, funcionários de alto escalão no Kremlin, ministros e assessores, que vieram das fileiras da KGB (o serviço secreto soviético) e do complexo militar industrial e que ascenderam com Putin até Moscou. São os chamados siloviki – ex-integrantes do sistema de segurança da URSS –, que ocupam mais de 60% das posições de médio e alto escalão no Estado. Eles administram numerosos departamentos do Kremlin, burocracias, operações bancárias e corporações estatais.
Putin tratou de garantir que quase todo o poder na Rússia seja do Executivo. O domínio da lei, dos juízes e dos júris é uma farsa. Os governadores das mais de 80 regiões do território são nomeados pelo Kremlin desde um decreto presidencial de 2004. As redes estatais de TV, principal instrumento de noticias e informação na Rússia, são neossoviéticas em obediência ao Kremlin. E, para não perder privilégios, na opinião de especialistas, a Cortina de Ferro foi substituída por um colchão formado por suas ex-repúblicas, zonas de influência entre o país e o restante do Ocidente – em especial os EUA.
– Putin e as elites estão convencidos de que têm de controlar tudo o que está acontecendo nessas zonas, caso contrário, estariam ameaçados de perder o poder. O que aconteceu na Ucrânia (em 2014, quando um levante popular derrubou o presidente Viktor Yanukovytch) foi um pesadelo para Putin, porque um regime muito parecido com o que existe na Rússia caiu, como consequência de um movimento popular, e ele não quer permitir que isso ocorra na Rússia. Por isso, qualquer coisa que os EUA façam, ou que Putin perceba que os EUA farão, nessas zonas próximas à Rússia, é considerada ameaça a seu poder no país – afirma Rouvinski.
Mielniczuk aposta que o freio recente na aproximação entre EUA e Cuba pode abrir espaço para a Rússia no Caribe:
– Os russos possuem uma diplomacia de altíssimo nível, formada dentro dos preceitos do realismo político (escola de pensamento que prega a ação dos Estados com vistas a maximizar os ganhos individuais e se aproveitar de lapsos dos seus adversários para extrair ganhos). Certamente, um recuo dos norte-americanos em sua aproximação com Cuba abrirá espaço para atuação russa na região. Aliás, para além do discurso idealista do ex-presidente Barack Obama, ao justificar a medida de aproximação com Cuba, existiam interesses bem pragmáticos. Os russos já haviam demonstrado vontade de cooperar com Cuba, renegociando a dívida externa do país, em 2013, e sinalizando para a reabertura de uma antiga instalação de inteligência do tempo da URSS.
A imagem gélida, impenetrável, de Putin contribui para a aura de mistério em torno de suas intenções. Formado nas fileiras da temida KGB, o presidente, que tem 64 anos, conserva, na vida pública, hábitos de espião: tem poucos e fiéis amigos, mal mexe os lábios enquanto fala e, no pouco que sorri, o faz de forma tímida.
– Sua formação em uma das agências mais obscuras de segurança que já existiram tem muito impacto na forma como vê as coisas. Sempre está desconfiado, porque lhe ensinaram que não se pode confiar nas pessoas – explica Rouvinski.
Putin já foi fotografado na academia, brincando com seus cachorros em Moscou e cavalgando na Sibéria sem camisa, mas há poucas imagens de sua vida familiar. Por trás de seu silêncio está a preocupação com a segurança de suas duas filhas, que, acredita-se, têm cerca de 30 anos. A mais nova, Katerina Tikhonova, é pesquisadora acadêmica e dança rock acrobático, segundo investigação feita pela agência de notícias Reuters. A outra, Maria, é pesquisadora especializada em endocrinologia. A mãe delas, Lyudmila, de quem Putin se separou em 2013 após 30 anos casamento, descreveu o marido como alguém viciado em trabalho.
No plano externo, Putin garantiu a seus eleitores uma versão russa da promessa de Donald Trump de "fazer a América grande de novo".
– Make Russia great again – compara, rindo, Rouvinski. – Não sei se Putin fez a Rússia ser grande de novo, mas o fato é que, agora, os russos têm esse sentimento de orgulho, de quem se vê respeitado. Na década de 1990, tinham perdido todo o respeito aos olhos do mundo.
Ao garantir aos russos que eles tenham seus próprios valores, cultura e idioma, Putin soma, nas pesquisas, 85% de popularidade. Mas esse estilo de governar, buscando o restabelecimento da força e da importância do país, cobra seu preço. Com as sanções econômicas recebidas após a reincorporação da Crimeia, começou a se ver a desvalorização do rublo, a moeda local. Hoje, um dólar vale 57 rublos. O salário mínimo é equivalente a US$ 721. Um almoço em um restaurante da Arbat, a rua mais famosa de comércio de Moscou, sai por cerca de US$ 5 por pessoa. O bilhete do metrô é inferior a US$ 1, mais barato do que em São Paulo. Mas o poder aquisitivo de boa parte da população caiu.
Mesmo com os altos índices de aprovação do presidente Putin, alguns russos não gostam de falar sobre política. Gerente de um restaurante, Oxsana Haydaraliev é uma das poucas pessoas encontradas por ZH que falam inglês – com alguma dificuldade. Diante de um repórter brasileiro, ela diz estar animada com a proximidade da Copa do Mundo (ainda que, na recente Copa das Confederações, a seleção russa tenha sido eliminada na primeira fase):
– Gostamos muito de futebol aqui, vai ser uma festa linda, uma grande oportunidade de receber gente do mundo inteiro, conhecer novas culturas, ver a cidade e o país inteiro movimentado. Vai mexer com o turismo, acho que teremos restaurantes lotados.
O semblante muda radicalmente quando perguntada sobre Putin:
– Não gostaria muito de falar sobre isso. Prefiro falar de outras coisas ao invés de política.
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Fim das celebrações à revolução de 1917
A impressão é de que Oxsana tem receio em externar seu ponto de vista. Mesmo a história do próprio país parece mal resolvida. Não há, por exemplo, sinais visíveis em Moscou dos cem anos da revolução comunista de 1917, que pôs fim ao império do czar Nicolau II. O dia 7 de novembro (25 de outubro no calendário vigente naquele ano), data em que os bolcheviques chegaram ao poder, era feriado oficial. Nesse dia, simpatizantes do comunismo costumavam marchar ao longo da Avenida Tverskaia até a estátua de Karl Marx, em frente ao Teatro Bolshoi. Em São Petersburgo, berço da revolução, volta e meia havia cartazes com frases como "Abaixo o capitalismo" e "Reformas do governo, morte da Rússia".
Hoje, isso é raro. Em 2005, Putin acabou com esse tipo de celebração, substituindo-a pela Jornada da Unidade do Povo, no dia 4 de novembro. A data comemora a libertação de Moscou da ocupação polonesa, que conduziu ao poder a dinastia dos Romanov (dona do poder até a revolução de 1917).
– Para o russo de hoje, que não viveu a revolução, o episódio entra como um evento no repertório de momentos que marcam a história de qualquer país. Há muito menos paixão nos debates do que no Ocidente, exceto para os membros do Partido Comunista. Os russos reconhecem pontos negativos e pontos positivos das mudanças implementadas a partir de 1917 – explica Mielniczuk.
Logo depois da Copa de 2018, haverá eleições. Embora Putin não tenha anunciado sua candidatura, quem conhece os meandros da política russa, como o jornalista russo Grigory Talingater, do site de esportes Championat, afirma não haver dúvidas de que ele tentará a reeleição – e vencerá:
– Estive no Brasil, trabalhando na Copa, e vi a presidente Dilma Rousseff sendo vaiada na abertura. Aqui, no primeiro jogo da Copa das Confederações, Putin foi aplaudido e teve seu nome gritado depois do discurso. Isso mesmo com o excessivo uso de dinheiro público nas obras do mundial.
O governo não está economizando para organizar a Copa. Se no Brasil viu-se a farra de verbas em estádios que não estão tendo uso adequado, na Rússia isso acontece ainda com mais intensidade. Todas as 12 arenas que sediarão os jogos têm ingresso de dinheiro público, algumas em cidades que não têm time nem na segunda divisão do país. Até agora, o custo estimado da organização da Copa já chegou aos R$ 35 bilhões, somando estádios e obras de infraestrutura. No Brasil, segundo o Tribunal de Contas da União, o Mundial de 2014 saiu por R$ 25,5 bilhões.
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Se concorrer e se reeleger, Putin somaria, como presidente e primeiro-ministro, 24 anos no poder, mais do que qualquer antecessor desde Josef Stalin. É mais tempo do que têm de vida pelo menos 30% dos russos. Por isso, são os mais jovens, que não têm a lembrança da era perdida dos anos 1990, que vão para as ruas – ou, por causa da repressão, para a internet – exigindo liberdade de expressão.
Na nova geração, o mais conhecido opositor chama-se Alexei Navalny. Ele liderou uma campanha contra a corrupção no Kremlin, driblando a censura do governo por meio de vídeos que viralizaram no YouTube. Após a publicação, começaram a surgir denúncias de jovens opositores atacados com spray verde, que provocou queimaduras e os deixou temporariamente cegos. Além de queimar, a tinta verde não é facilmente removida, o que serve para marcar os opositores e humilhá-los nas ruas. Recuperado de um ataque do tipo em abril, Alexei pintou o rosto e as mãos de verde e postou uma selfie na internet. No dia seguinte, apoiadores fizeram o mesmo. Em outro protesto, em junho, em plena Copa das Confederações, 1,7 mil pessoas foram presas.
A truculência policial produz cenas conhecidas. Mulheres do grupo Pussy Riot, que defende os direitos LGBT, sendo carregadas nuas no inverno russo, retiradas à força de igrejas e prédios públicos, onde protestavam contra a legislação homofóbica do país. Quem acompanhou os arroubos machistas de Trump na campanha contra Hillary Clinton não se surpreende com Putin diante das câmeras em quatro episódios de entrevistas ao cineasta Oliver Stone, resultado de 12 encontros ao longo de dois anos, exibidas nos EUA pelo canal Showtime em junho. A série The Putin Interviews revela a opinião do presidente russo sobre Edward Snowden ("Ele errou ao vazar documentos dos EUA") e detalhes sobre sua rotina diária, que inclui aulas de natação e musculação (o chefe do país não gosta muito de futebol). Ainda sem previsão de exibição no Brasil, The Putin Interviews traz trechos de rara intimidade com o comandante do Kremlin. À certa altura, Putin diz que não tem dias ruins porque "não é mulher".
– Não quero ofender ninguém, é apenas a natureza das coisas. Existem certos ciclos naturais – justificou, no programa.
Questionado por Stone sobre algumas leis aprovadas durante seu governo e consideradas homofóbicas, Putin declarou apenas que não existem restrições nesse sentido na Rússia.
– Mas o senhor tomaria banho em um submarino, por exemplo, ao lado de um homem gay? – insiste Stone.
A resposta de um dos homens mais poderosos do mundo atual:
– Bem, eu acharia melhor não. Para que provocá-lo? Mas, enfim, sou faixa preta em judô.
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