Os primeiros cem dias de Donald Trump na presidência dos Estados Unidos podem ser resumidos em números e gestos. Os 945 tuítes disparados da sua conta pessoal, muitos deles com recados públicos emitidos de forma direta, mostram a afeição pelas redes sociais. Já o anúncio de que não participaria do tradicional jantar de correspondentes estrangeiros da Casa Branca (evento organizado pela mídia que costuma contar com a presença dos presidentes americanos), no sábado, sugeriu que não se importa muito com a imprensa.
Trump costuma tratar veículos de comunicação como "inimigos do povo americano". E dá demonstrações de que esse sentimento vai além das palavras. A desfeita à imprensa não se resume a desprezar jantar instituído em 1921 pela Associação de Correspondentes da Casa Branca para arrecadar fundos destinados a bolsas de Jornalismo. Também se dá pela prática de vetar e escolher entrevistadores.
Analistas veem o crescimento de outra ameaça, mais sutil, à liberdade de imprensa. O mundo estava acostumado com governantes explícitos na falta de afeição pelo jornalismo, como Nicolás Maduro, da Venezuela, e Recep Tayyip Erdogan, da Turquia, país que mantém 150 jornalistas trancafiados – algo como uma redação inteira impedida de se expressar e de ir e vir.
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Denilde Oliveira Holzhacker, professora de Relações Internacionais da ESPM-SP, mostra esse temor.
– A imprensa livre é um dos pilares da democracia, um dos seus princípios. E ela está sendo agredida de diferentes maneiras. De um lado, o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, trata-a como inimiga. De outro, o presidente americano, Donald Trump, questiona sua legitimidade, impõe quem faz a cobertura na Casa Branca e até falta ao tradicional jantar de gala – alerta Denilde, para completar discorrendo sobre os efeitos disso:
– A imprensa representa os anseios da sociedade. Há uma série de restrições, várias formas de coibir o exercício do jornalismo hoje no mundo. Por vezes, os controles são sutis. Quem sofre é o cidadão.
No caso do jantar em Washington, o presidente da associação, Jeff Mason, mostrou-se preparado para enfrentar os novos e preocupantes tempos.
"O jantar foi e continuará sendo uma celebração da Primeira Emenda (sobre a liberdade de expressão) e do importante papel desempenhado pelos meios independentes em uma república saudável", escreveu no Twitter.
Veículos de comunicação criticam atitude de Trump
Meios tradicionais foram menos polidos. O The New York Times definiu a decisão como um "insulto aos ideais democráticos" e a CNN a chamou de "inaceitável". Trump redigiu um dos seus quase mil tuítes em cem dias (média de 10 por dia) para alfinetar o jornal quando ocorreu a entrega do prêmio Oscar. "Pela primeira vez o decadente @nytimes vai exibir um comercial (um ruim) para tentar salvar sua reputação em queda. Tente informar de maneira precisa e justa!", escreveu, em tom irônico, a quem classifica como "imprensa desonesta".
A última vez em que um presidente não havia comparecido ao jantar dos correspondentes fora em 1981: Ronald Reagan se recuperava do tiro que recebera em tentativa de assassinato. Na impossibilidade de estar presente, deu um telefonema para os organizadores.
Presidente da Associação Nacional de Jornais e do Fórum Mundial de Editores (WEF), o jornalista Marcelo Rech, vice-presidente editorial do Grupo RBS, também comenta as novas restrições à imprensa livre.
– Vivemos uma situação em que as ameaças à liberdade de expressão e de imprensa são bem mais sofisticadas do que a repressão ou a censura do passado, com prisões e assassinatos. Hoje, há formas muito sofisticadas de intimidação e de distorção de manifestações de jornalistas. Há esquemas internacionais destinados a atingir a reputação de profissionais, com mentiras e ataques, para atingir a essência da atividade deles, que é a credibilidade.
Há também ameaças físicas, e o caso mais evidente nos últimos meses é a Turquia, que tem mais de 150 jornalistas presos em um ano. É preciso que a sociedade fique muito atenta, porque a noção da pós-verdade procura também afetar a reputação dos veículos de comunicação e dos jornalistas – diz o dirigente.
Em 2016, 259 jornalistas foram encarcerados
Rech pontua o advento da "pós-verdade" e a ameaça aos veículos.
– Para ter liberdade de expressão, deve-se ter a expressão. Tanto a ameaça à verdade de um lado quanto à própria perenidade dos veículos de comunicação são nocivas para a liberdade de imprensa. O jornalismo profissional é a última barreira de contenção contra as inverdades. Somos mais relevantes do que nunca – diz.
A preocupação é generalizada. Eventualmente, Trump diz que a imprensa falta com a verdade. Em fevereiro, a Casa Branca impediu a entrada de jornalistas na entrevista diária do portavoz Sean Spicer. A CNN definiu o episódio como "inaceitável", e o The New York Times, como "insulto aos ideais democráticos".
Líderes do setor viram-se impelidos a endereçar carta a Trump manifestando sua preocupação. Enviada pelo WEF e pela World Association of Newspapers and News Publishers (WAN-IFRA), a carta enfatizou o risco de que as ações comprometam a liberdade de imprensa e contou com as assinaturas de 42 líderes mundiais do setor da imprensa, entre eles, Rech e o presidente emérito do Grupo RBS, Jayme Sirotsky. "Acreditamos fortemente que o presidente da principal democracia do mundo deveria dar boas-vindas e incentivar a autocrítica rigorosa defendida pela imprensa livre como um meio de garantir os mais altos padrões de governança", diz o documento.
Diretor da WAN-IFRA, o australiano Andrew Heslop não deixa de se preocupar com os novos problemas que surgem para a liberdade de imprensa, mas sublinha a permanência, também, dos mais antigos. De acordo com Heslop, o relatório sobre o ano de 2016 provoca "desconforto". Há ainda impunidade para autores de agressões a jornalistas, e isso coíbe a punição, possibilitando a continuidade dos crimes. O levantamento anual diz que houve 259 prisões de jornalistas, um recorde. Heslop critica as persistentes "pressões exercidas sobre profissionais e veículos de comunicação", prática que atende, segundo ele, a "interesses poderosos".