Uma imagem poderia explicar as estimativas dos analistas em relação ao Brexit, a saída britânica da União Europeia (UE). É a de um jogo de dominó, mas com as peças caindo para trás, numa inversão ao que vinha ocorrendo década após década no continente. Sentimentos nacionalistas e de rejeição ao padrão global marcado pela austeridade se unem para pôr em xeque o modelo de blocos econômicos.
Um alerta para essa tendência foi feito pelo professor de negociação e resolução de conflitos da Fundação Getulio Vargas (FGV) Yann Duzert, que vê a confluência de dois interesses tradicionalmente opostos: o de nacionalistas, muitos deles xenófobos, com esquerdistas que rejeitam decisões da UE.
– A Inglaterra em particular é uma ilha, uma monarquia com identidade forte. Nunca aceitou o euro, por exemplo. Nunca aceitou bem as decisões opacas vindas de Bruxelas. Nunca houve uma identidade reconhecidamente europeia. De um lado, havia os imigrantes. De outro, a globalização liberal – diz Duzert.
O resultado disso é o advento do tal dominó invertido.
– Há um risco de regionalização, com cada vez mais buscas de separação. Haverá até mesmo acordo entre grandes cidades. Isso vai de encontro a tudo o que ocorreu nas últimas décadas. Ficará mais nítida a existência de uma Europa do norte e outra do sul, cada uma com sua velocidade. Pesou muito a existência de pessoas carentes e o modo tecnocrata e autoritário com que a UE as tratava. A isso, somou-se o fato de o lado cultural europeu nunca ter sido bem entendido por metade da população britânica.
Em londres, 40 mil já pedem independência
A regionalização que poderia chegar até as cidades já se fez notar na sexta-feira – e de forma paradoxal, porque defende a saída londrina do Reino Unido, mas a permanência na UE. Mais de 40 mil londrinos assinaram manifesto pedindo para permanecer na UE e ser independente do resto do Reino Unido, em resposta a vitória do Brexit. "Declarem Londres independente do Reino Unido e solicitem imediatamente a adesão à UE", clamava o manifesto publicado no site change.org. "Londres é uma cidade internacional, e queremos continuar no coração da Europa", diz o texto, para finalizar: "Vamos enfrentar o resto do país que não está de acordo. Assim, em vez de votar um contra o outro a cada eleição, oficializemos o divórcio e vamos permanecer com os nossos amigos do continente".
Além de Londres, Escócia e Irlanda do Norte votaram a favor da UE. A premier da Escócia, Nicola Sturgeon, pró-UE, decidiu organizar plebiscito sobre a independência do país. Os escoceses foram francamente europeístas – 62% da população votou pela permanência no bloco. Na Irlanda, que integra a UE, a tendência é de redução no comércio com a Irlanda do Norte – o que poderia fomentar o separatismo irlandês. São temidos controles nas fronteiras, com burocracia para empresas e famílias.
O presidente do partido independentista Sinn Fein, da Irlanda do Norte, Declan Kearney, disse se ver "obrigado a aceitar a decisão da Inglaterra", mas instado a pressionar para que ocorra "referendo sobre a fronteira".
Enquanto tudo isso ocorre no Reino Unido e arredores, os outros países da UE ameaçam seguir o exemplo britânico e já tentam negociar vantagens com Bruxelas. E o próprio bloco teme a perda de influência. O Reino Unido é a única potência nuclear europeia, membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, com a França. E isso pode levar a "efeito desastroso para a política de segurança", segundo Rosa Balfour, analista do German Marshall Fund, que lembra os atentados terroristas recentes. Também é temida a imagem enfraquecida da UE frente a potências como EUA, China e Índia. Outro efeito deve ser a redução da chegada de migrantes, o que levaria à falta de mão de obra nos setores de construção e serviços.
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O Brexit não representa alterações na moeda utilizada pelo Reino Unido, que mantém a libra esterlina. Na sexta-feira, a moeda teve queda de 8% em relação ao dólar – a maior em 31 anos. Os britânicos nunca fizeram parte da zona do euro, integrada por 19 dos 28 – agora 27 – Estados-membros da UE.
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O Reino Unido é formado por Inglaterra, País de Gales, Escócia (que, juntos, formam a Grã-Bretanha) e a Irlanda do Norte. Londres é a capital do bloco, que reúne entre os quatro países 64,8 milhões de habitantes – 12,8% da população da União Europeia (UE). Com sistema político de monarquia constitucional parlamentar, ingressou na UE em 1973, mas não aderiu ao euro, mantendo a libra esterlina como moeda. No ano passado, como segunda maior economia do bloco, registrou produto interno bruto (PIB) de 2,5 bilhões de euros (14% do PIB total da UE). O Reino Unido havia exercido a presidência rotativa do Conselho da UE cinco vezes entre 1977 e 2005. A próxima seria no ano que vem.