Em um trecho descampado dessa verdadeira cidade de barracas e trailers, o rei, de jeans sujos e uma capa feita em casa, ergueu o cetro de madeira e anunciou sua intenção de dividir o reino. Suas filhas mais velhas, com coroas de papel e bijuterias de plástico, se desmancharam em falsos elogios, enquanto a mais nova falou a verdade e perdeu a herança.
Assim começou a mais recente adaptação de "O Rei Lear". Para as cem crianças do elenco, foi o primeiro contato com Shakespeare, embora já saibam muito bem o que é tragédia.
Todas são refugiadas, todas fugiram da guerra civil na Síria. Algumas chegaram a ver suas casas destruídas; outras perderam familiares para a violência. A maioria ainda não consegue dormir direito ou se assusta quando ouve barulho alto e inesperado. E agora é aqui que moram, nesse acampamento isolado, sem árvores, em um lugar onde imperam a pobreza, a incerteza e o tédio.
Uma rápida análise da demografia da crise dos refugiados sírios nos mostra que, segundo a ONU, grande parte das 587 mil pessoas inscritas na Jordânia tem menos de 18 anos, sendo que 60 mil desses jovens vivem aqui nesse acampamento, onde menos de 25% vai à escola com regularidade.
Pais e assistentes humanitários temem que a guerra seja responsável por uma geração perdida, marcada pela violência e sem a parte mais vital da educação formal, cujas experiências e desvantagens vão atormentar seus membros durante a vida adulta.
A apresentação de "O Rei Lear", conclusão de um projeto que durou vários meses, foi uma tentativa de combater essa ameaça.
- A ideia é trazer de volta o riso, a alegria, a humanidade - , explica o diretor, Nawar Bulbul, um ator sírio de 40 anos conhecido na terra natal por seu papel em "Bab al-Hara", um drama de época superpopular televisionado para todo o mundo árabe.
No ano passado, ele e a mulher francesa se mudaram para a Jordânia, onde amigos os convidaram a trabalhar como voluntários em Zaatari e a primeira visita o expôs ao que chamou de "grande mentira" da política internacional que não conseguiu acabar com o conflito.
- Tem gente que só quer voltar para casa, mas continua sendo vítima das grandes forças que brigam entre si - , resume ele.
As crianças que conheceu o fizeram prometer voltar ao acampamento, e foi o que fez com um plano de mostrar ao mundo que apesar de refugiados, pobres e desafortunados, poderiam produzir teatro de qualidade.
O sol brilhava forte no dia do espetáculo, realizado em um retângulo rochoso de terra cercado por uma cerca coberta de arame farpado. Os doze atores principais ficaram no meio, com o resto do elenco mais atrás, como um coral responsável pelos comentários e efeitos sonoros dramáticos. A plateia sentou no chão.
Quando as duas filhas mais velhas de Lear o enganaram com elogios falsos em um árabe elegante e formal, membros do coro gritaram "Mentirosa! Hipócrita!" até as irmãs pedirem para se calarem.
E quando a caçula se recusou a fazer o mesmo, eles gritaram "Verdadeira! Justa!" até que o rei mandasse que se calassem.
Nas cenas posteriores, o rei foi provocado pelo Bobo, que usava uma peruca multicolorida, e oito garotos exibiram uma luta coreografada de espadas, representadas por tubos de plástico. Algumas cenas de "Hamlet" foram incluídas, tornando a história difícil de acompanhar. A certa altura, um caminhão-pipa apareceu, quase afogando os atores e cobrindo o público em uma nuvem de poeira.
Porém, só o fato de ver a peça encenada foi suficiente para as centenas de espectadores. As famílias que vivem nas barracas mais próximas levaram os filhos, levantando os menores nos ombros para que pudessem ver também.
Depois da loucura e morte do rei, o elenco cercou o público, repetindo triunfante "Ser ou não ser!", em inglês e árabe. A multidão irrompeu em aplausos e várias protagonistas caíram no choro. Nawar explicou que as meninas se emocionaram porque foi a primeira vez que foram aplaudidas.
Depois do espetáculo, enquanto os jornalistas entrevistavam o elenco, os pais, orgulhosos, elogiavam o talento dos filhos.
- Eu sou a mãe do rei Lear - , declarou Intisar al-Baradan quando perguntada se tinha assistido à peça. Na verdade, não só viu como levou vinte parentes e concluiu a conversa com vários elogios à boa voz do menino.
Outros pais descreveram o projeto como um raro ponto de luz na escuridão da vida no acampamento.
Hatem Azzam, cuja filha Rowan, de doze anos, encarnou uma das primogênitas de Lear, contou que a família fugiu de Damasco quando as forças do governo incendiaram sua carpintaria.
- Nosso bairro era considerado rebelde, aí eles vieram e tacaram fogo em todas as lojas - , conta.
Ele chegou a Zaatari há um ano com outros cinco familiares, mas um de seus irmãos adoeceu e morreu logo depois. Sua mãe, idosa, nunca se adaptou ao clima do deserto e também acabou morrendo.
Hesitou em mandar as crianças para a escola por temer que ficassem doentes nas classes lotadas e não deixa que brinquem pelo acampamento porque não quer que comecem a fumar e adquiram outros vícios mas o projeto teatral era perto de casa e a filha ficou tão empolgada que não teve como negar.
- Oportunidades aparecem durante a vida, é preciso tirar vantagem delas. Minha menina teve essa chance ainda novinha; tomara que isso facilite sua vida no futuro. -
A mãe de Bushra al-Homeyid, de treze anos, a outra filha de Lear, conta que a família saiu da Síria depois que os ataques do governo mataram seus dois sobrinhos.
- A vida no acampamento é temporária, é incompleta. Espero que nosso tempo aqui seja curto. -
No entanto, depois de um ano, ela teme que a mais velha, que estava no ensino médio, não tenha condições de ir para a faculdade.
A caçula, Bushra, que sorria o tempo todo e ainda usava a coroa de papel amarelo, disse que nunca tinha atuado, mas que gostaria de continuar.
- Gosto da ideia de poder mudar minha personalidade e ser outra pessoa - , revelou ela.
Teatro e literatura
Obras de Shakespeare inspiram jovens refugiados sírios na Jordânia
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