Eram nove da manhã e centenas de mulheres marroquinas, muitas de idade, já estavam trabalhando, curvadas, fazendo força, tentando subir a colina para chegar ao posto fronteiriço. Muitas levavam pacotes do tamanho de máquinas de lavar nas costas.
Dezenas de outras, apavoradas demais para seguirem adiante, aguardavam de lado com seus fardos, a exaustão e a derrota estampadas no rosto. Um pouco mais para cima, homens de bonés, alguns usando cintos como chicotes, tentavam controlar a multidão inquieta, com pouco sucesso.
- Meus filhos precisam comer. O que vou fazer? Preciso trabalhar, disse uma das mulheres, Rkia Rmamda, que observava a confusão, soluçando.
Difícil existir uma diferença econômica mais abissal no mundo do que a registrada entre as cercas que separam os enclaves espanhóis de Melilla e Ceuta no litoral norte da África. Aqui, apenas algumas cercas e rolos de arame isolam a riqueza europeia do desespero africano. A barreira é tão frágil e tão irresistível que os mais ousados não cansam de tentar superá-la. Uma das tentativas mais recentes foi um ataque coordenado de 800 pessoas escalando as barreiras.
Entretanto, mulheres como Rmamda, conhecidas como "mulas", estão entre os marroquinos que vivem na região imediatamente adjacente a Melilla e não precisam de visto para cruzar a fronteira - e, nos últimos vinte anos, passaram a usar esse privilégio em vantagem própria, levando para o Marrocos objetos que pegam na Espanha, como roupas, papel higiênico e eletrônicos pequenos, às vezes ganhando 3 euros por viagem, outras dez. A maioria não ultrapassa os quinze ou vinte euros por semana, ou o equivalente a US$20 e US$27.
- A diferença de renda entre a Espanha e o Marrocos varia de 17 a 20 vezes. A maior de qualquer outra área fronteiriça do mundo, conta José María López Bueno, presidente do Promesa, grupo de apoio de desenvolvimento econômico de Melilla.
Cerca de 300 milhões de euros na forma de vários produtos chegam ao porto de Melilla por ano, sendo praticamente tudo destinado ao Marrocos e outros países da região, mas primeiro são transportados por mulheres como Rmamda, geralmente nas costas ou rolando a encosta, por cerca de 500 metros, para que os comerciantes evitem pagar impostos: isso porque, segundo a lei do país, os pacotes de mão são considerados bagagem e, portanto, isentos.
Como a situação se agravou no Marrocos nos últimos meses, até os homens estão disputando esse serviço. Jovens e em boa forma, eles saem na frente, bloqueando as mulheres e até empurrando as pobres, levantando poeira ao carregar pacotes gigantescos ou rolando pneus de trator imensos a caminho dos postos, indiferentes a quem estiver no caminho. Claro, pois quanto mais vezes conseguirem ir e voltar durante os períodos breves e arbitrários de abertura, mais vão faturar.
Recentemente, estive por lá e testemunhei Zahra Kechache, de 65 anos, carregadora há mais de dez, tendo um ataque de asma. Nora el-Koukhou, de 39 anos, que tem cinco filhos e o marido na cadeia, estava chorando por quase ter sido esmagada entre dois fardos no corredor que leva às catracas da fronteira. Uma mulher estava deitada na valeta, gemendo, com um sangramento na cabeça.
- Com a chegada dos homens o negócio ficou impossível. Muito perigoso. Tenho medo de qualquer hora quebrar um braço ou uma perna, reclama Rmamda, que tem quatro filhos e um marido cego para alimentar.
A barreira que separa o Marrocos de Melilla foi erguida nos anos 90. Antes disso, pessoas e produtos fluíam de um para o outro com facilidade; a integração à União Europeia, porém, mudou tudo. Já se esperava um reforço no controle fronteiriço e foi exatamente o que aconteceu.
Foi durante esse período que surgiu o trabalho dessas mulheres. Elas iam para Melilla de manhãzinha e voltavam com pacotes no fim do dia. No início, a concorrência era pouca e os fardos, menores, assim como a demanda.
Hoje em dia, os pacotes podem chegar a até 100 kg, com a média entre 70 e 80 kg. A fronteira fica aberta apenas quatro dias por semana - e mesmo estando ali não há garantia de que vão receber alguma coisa.
A Guardia Civil, a polícia espanhola, mantém uma ambulância sempre de prontidão - que é usada de três a quatro vezes por mês, segundo Juan Antonio Martin Rivera, porta-voz da instituição.
As autoridades dizem que pouco podem fazer a respeito do que acontece na fronteira, mesmo que seja em solo espanhol. Geralmente há apenas sete oficiais no posto para supervisionar os carregamentos. A maior parte do controle é feita pelos tais homens de bonés, contratados pelos comerciantes marroquinos para a manutenção da ordem.
Juan José Imbroda, chefe executivo de Melilla, afirma ter se oferecido para criar um posto maior para aliviar a pressão, mas que o governo marroquino teria recusado sua oferta. E prossegue, dizendo que atualmente são essas autoridades que controlam tudo, abrindo e fechando a passagem de acordo com sua vontade, gerando uma pressa que pode se tornar perigosa.
Segundo ele, a única coisa que a Espanha pode fazer é simplesmente proibir a prática, o que agravaria ainda mais a situação das mulheres.
- Esse é um problema socioeconômico que não oferece solução simples, afirma Imbroda.
Nossos contatos com os oficiais alfandegários marroquinos para explicar as condições no posto de Melilla foram solenemente ignorados.
Os integrantes da Guardia Civil, cuja função é impedir que haja tumultos, acham a selvageria da cena difícil de presenciar. - Esse trabalho não é digno da União Europeia, comenta um, com desgosto.
As carregadoras começam a sair do Marrocos ainda de madrugada, para muitas vezes ficar horas na fila, à espera da abertura do posto, às sete da manhã. Muitas delas mal conseguem sobreviver. Kechache, cujo marido é cego, sustenta uma filha que ainda mora com o casal em um quartinho apertado - apesar da precariedade, ela está com o aluguel atrasado sete meses e teme ser despejada. A família só consegue fazer uma refeição por dia.
Rmamda mora em uma casa semiacabada, sem janelas, e o piso coberto de tapetes finos de tão gastos. O vento entra pelos buracos que a ferrugem fez na porta da frente. No dia em que conversamos, ela tinha conseguido retirar um pacote e comentou: - Hoje foi bom, mas muitas vezes saio daqui sem nada.
Só de pensar na possibilidade de ver uma das filhas fazendo o mesmo que ela lhe enche os olhos de lágrimas. - Isso não é vida, fala baixinho, esfregando o joelho que lateja constantemente. Seu vizinho, Mohamed Gabari, de 46 anos, disse que uma vez tentou carregar um fardo, mas não aguentou o peso.
A grande maioria das carregadoras não sabe ler ou escrever. Quando pergunto seus nomes, tiram os passaportes do avental feito à mão que trazem sob as roupas. Na verdade, só o que querem é um pouco mais de organização na fronteira - e que os comerciantes diminuam o tamanho dos pacotes.
Algumas ainda torcem para que a sorte mude.
El-Koukhou trabalhava como doméstica para uma família espanhola em Melilla. O dia era longo, mas ganhava 300 euros por mês, lembrança que ainda lhe ilumina o rosto. - Estou acabando com a minha saúde aqui. Já sou metade do que costumava ser, lamenta.
Fronteira entre Marrocos e Espanha
Em condições desumanas, população marroquina disputa carregamento de mercadorias
Cerca de 300 milhões de euros na forma de vários produtos chegam ao porto de Melilla por ano, sendo praticamente tudo destinado ao Marrocos e outros países da região
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