Na última vez em que sua mãe o viu, ele se reuniu com a família para as orações à alvorada como de costume. Algumas horas mais tarde, o estudante de engenharia de 19 anos havia desaparecido. Ninguém o viu sair, o celular estava desligado e os torpedos não eram respondidos.
Cinco dias mais tarde ele reapareceu: seu rosto foi divulgado no noticiário da noite.
Investigadores encontraram seus documentos em um prédio nos arredores de um ataque suicida na área de Beirute, bem como metade de seu corpo no jipe Grand Cherokee verde que transportara a bomba. A polícia logo identificou o homem, Qutaiba al-Satem, como o terrorista.
- Quando vi o documento, fiquei aliviada porque o haviam encontrado - , afirmou a mãe de Satem, Fawziya al-Sayid, vestida de preto e sentada na casa da família. - Porém, então... - , ela começou a falar, enquanto a voz sumia ao se lembrar de entender o que o filho havia feito.
Como a guerra civil na vizinha Síria inflamou as tensões no Líbano, uma série de atentados deixou dezenas de mortos, provocando o medo de que tal violência pudesse virar rotina. A imprensa local foi inundada de relatos de ameaças pelo país inteiro, e as autoridades usaram as tropas para procurar bombas nas ruas do centro.
Desde que Satem foi implicado no atentado, que matou cinco pessoas em dois de janeiro em um bairro dominado pelo Hezbollah, ele passou a personificar aquilo que os libaneses mais temem: compatriotas tão radicalizados pelo conflito na Síria que dariam a vida para atacar aqueles que são considerados inimigos dentro do próprio país.
Contudo, o retrato é mais sombrio nesse vilarejo isolado nos arredores da fronteira síria onde Satem cresceu. Embora Satem tivesse simpatia pelos rebeldes sírios e tenha ido uma vez se encontrar com eles, amigos e vizinhos não se lembram de nenhum sinal óbvio de extremismo. Muitos sentem que a descoberta de seu corpo e do documento - quase intacto, apesar da explosão - gerou mais perguntas do que respostas.
- Esse tipo de pensamento é de total estranheza para nós; sabemos que era seu corpo, mas existem muitas perguntas sobre como ele terminou lá - , afirmou Ahmed al-Sayid, primo de Satem.
Muito raramente as investigações desses ataques no Líbano chegam a conclusões claras, deixando as pessoas à vontade para interpretar o assunto segundo sua própria visão política. Muitos partidários do Hezbollah, que apoia o governo sírio, culparam a Arábia Saudita, que apoia os rebeldes, pelo ataque. Porém, vizinhos de Satem acusaram o Hezbollah de sequestrá-lo e plantar seu documento no local. Nenhum dos lados dispõe de provas convincentes. A reivindicação do atentado em um feed do Twitter afirmando representar um afiliado sírio da Al Qaeda não foi confirmada.
A morte de Satem lançou uma sombra sobre sua vila, uma das comunidades espalhadas pelos morros rochosos no distante nordeste libanês conhecido como Wadi Khaled.
Há muito tempo a área dos residentes tem laços mais fortes com a Síria do que com o Líbano, graças a relações entre clãs que transcendem a fronteira e uma história de negligência do governo.
A geografia também desempenha um papel. Muitas casas da região são tão próximas da fronteira que os moradores podem ver os vizinhos sírios da janela. E um bolsão na fronteira significa que algumas aldeias são cercadas pela Síria pelos três lados.
Entretanto, antes de o conflito na Síria começar em março de 2011, tais fronteiras pouco importavam.
- Antes dos eventos, a gente nem sequer sabia onde ficava a fronteira - , disse Talal al-Ali, líder comunitário no vilarejo de Satem. - Às vezes, a gente entrava na Síria e nem sabia disso -
Tal fato transformou a área em um entroncamento de contrabando, e muitos moradores de Wadi Khalid viviam bem comprando gasolina barata, hortifrútis e cigarros na Síria e os revendendo no Líbano.
Tudo isso mudou quando começou o conflito na Síria. Os confrontos entre rebeldes e forças do governo cortaram as rotas de contrabando, com balas perdidas e projéteis atingindo a área, danificando casas e matando moradores.
À medida que a guerra avançava, refugiados sírios foram se avolumando, primeiro ficando com as famílias libanesas, depois lotando depósitos, estábulos e prédios inacabados, praticamente dobrando a população original de 40 mil pessoas.
- Eles estão por toda parte - , afirmou Fatima Mustafa, de pé ao lado de uma estrutura de dois cômodos que abrigou sua família desde que fugiram da Síria dois anos atrás. A cidade síria de Homs, onde os moradores locais faziam compras, é visível no horizonte, e as explosões da luta do outro lado da fronteira ecoam ocasionalmente pelos morros.
A sensação de choque ainda permeava a casa da família de Satem certa tarde. A noite de tempestade deixou poças na única rua pavimentada da vila e reduziu o terreno pedregoso diante da casa a um lamaçal. Dentro, fazia tanto frio que a respiração da mãe de Satem era visível enquanto chorava pelo filho.
- Nem sequer posso ter sua foto no telefone porque me descontrolo sempre que a vejo - , ela contou.
Parentes de Satem relataram que ele sempre foi educado e quieto, raramente falando em grupos. Ele foi um muçulmano devoto, mas não mais do que os demais. Satem estudava Engenharia em uma universidade em Trípoli.
- Ele fumava narguilés, ouvia música e frequentava cafeterias; era um rapaz normal - , disse Sayid, o primo.
Depois que Satem desapareceu, a família informou o sumiço à polícia. Três dias depois, seu corpo e o documento foram encontrados perto do local da explosão. Os restos mortais foram levados à aldeia e enterrados em uma cova simples coberta com ramos verdes e flores amarelas.
Os moradores continuam perplexos com a morte de Satem. Embora muitas pessoas da área de maioria sunita simpatizem com os rebeldes na Síria, menos de duas dúzias foram lutar, e os familiares mais velhos tentaram impedi-los.
Segundo moradores, um dos primos de Satem luta com os rebeldes há meses e, de acordo com um comandante rebelde em um ponto mais ao sul da fronteira, o rapaz foi contatado no passado por famílias de Wadi Khalid que tentavam encontrar seus filhos. Uma vez, ele atrasou dois jovens de Wadi Khalid perto da fronteira até que as famílias conseguissem recuperá-los.
Satem também lutou na Síria, mas o pai usou os contatos ao longo da fronteira para trazê-lo de volta, contou Ali, o líder da aldeia.
Temendo que o filho fosse envolvido pela guerra, o pai o tirou da universidade, o matriculou em uma faculdade local e o botou para trabalhar em uma loja de roupa de artigos masculinos. Ainda segundo Ali, à época do desaparecimento de Satem, o pai tentava enviá-lo à França para que esquecesse a guerra.
Mesmo assim, Ali acha que havia algo estranho no papel de Satem no ataque e acredita que um grupo extremista o tenha o persuadido a executá-lo.
- O corpo era o dele, não podemos negar isso, mas a operação era delicada demais para ele. Algo muito misterioso nessa história toda permanece - , argumentou Ali.
Terrorismo
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