No hospital de Bost, Bibi Sherina, uma mãe adolescente, está sentada na cama ao lado de seus filhos na ala de desnutrição aguda grave. Ahmed, de 3 meses apenas, parece maior que seu irmão Mohammad, de um ano e meio, que está magro e pálido e pesa 4,5 quilos.
Fátima, de menos de um ano, está em outra cama com uma desnutrição tão grave que afetou seu coração. Os médicos não acreditam que ela viverá muito tempo, a menos que seu pai consiga dinheiro para levá-la até Kabul, capital do Afeganistão, para ser submetida a uma cirurgia. A menina tem um olhar de medo estampado no rosto e são raros os momentos em que não chora. Metade das outras crianças da ala também está chorando, um som que se repete quase sem cessar.
Hospitais afegãos como o Bost, localizados na capital da província de Helmand castigada pela guerra, têm registrado aumentos significativos dos casos de desnutrição entre crianças. Esses casos aumentaram 50% ou mais em todo o país em comparação a 2012, de acordo com os números fornecidos pela ONU. Os médicos relatam situações semelhantes nas províncias de Kandahar, Farah, Kunar, Paktia e Paktika - áreas nas quais a guerra alterou o ritmo de vida e gerou uma crise nutricional entre os pobres e vulneráveis.
- Em 2001 a situação esteve pior, mas eu não presenciava uma situação tão ruim desde então - afirmou o Dr. Saifullah Abasin, chefe da ala de desnutrição do Hospital Infantil Indira Gandhi, de Kabul.
As razões para esse aumento permanecem incertas ou controversas. A maioria dos médicos e trabalhadores de ajuda humanitária concorda que a situação de guerra constante e o deslocamento de refugiados têm contribuído com esse aumento. Alguns acreditam que o número crescente de pacientes infantis seja um bom sinal, ao menos em parte, pois revela que os afegãos têm tomado conhecimento dos tratamentos disponíveis.
Um fato está claro, apesar de anos de participação do Ocidente e dos bilhões de dólares enviados como ajuda humanitária ao Afeganistão, a saúde das crianças continua um problema que, além de grave, vem piorando, e os médicos que vivenciam o impacto dessa crise estão preocupados.
Quase todas as linhas telefônicas de emergência potenciais estão saturadas ou quebradas. Os esforços para instruir a população sobre nutrição e cuidados com a saúde muitas vezes acabam frustrados por tradições conservadoras que enclausuram as mulheres, afastando-as do contato com pessoas de fora da família. A agricultura e as atividades locais de apoio social foram interrompidas por causa da guerra e da fuga de refugiados em direção às cidades. Além disso, os programas de terapia alimentar são práticas complexas mesmo para os países com sistemas de saúde eficientes e ficaram comprometidos após interrupções no envio de ajuda e nos transportes devido a tensões políticas ou à violência.
A gravidade da situação talvez não esteja tão aparente em outros locais quanto na ala de desnutrição do Hospital de Bost, onde 200 crianças são internadas todo mês com desnutrição aguda grave, um número quatro vezes superior ao de janeiro de 2012, de acordo com representantes dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), organização francesa que ajuda o hospital de administração Afegã com financiamento e pessoal suplementar.
Um dos pacientes, Ahmed Wali, de 2 anos, tem kwashiorkor, doença decorrente de deficiência proteica. Como consequência, seus cabelos ficaram descoloridos, o abdômen está distendido e os pés, inchados. Um menino de 8 meses, chamado Samiullah, tem marasmo, outra forma avançada de desnutrição em que o rosto da criança fica parecido com o de uma pessoa idosa devido ao surgimento de pregas na pele.
Os Médicos Sem Fronteiras ajudaram o Hospital de Bost a quase duplicar o número de leitos da ala pediátrica no final de 2013, embora eles continuem insuficientes - entre 40 e 50 crianças são tratadas todos os dias e como são muito pequenas, em geral ficam duas em cada leito. Quase 300 crianças com desnutrição menos grave fazem parte do programa externo de alimentação terapêutica.
Atualmente, o MSF planeja inaugurar cinco clínicas na cidade, ligadas ao Hospital de Bost, com programas de alimentação intensiva para diminuir a pressão sobre o hospital superlotado.
Apesar do aumento dos casos de desnutrição no período, médicos e autoridades de saúde não estão certos de que exista algum fator causador da elevação acentuada da desnutrição infantil.
- Trata-se de uma situação fora do comum, é difícil compreender o que está ocorrendo - afirmou Wiet Vandormael, representante do MSF que ajudou a coordenar o Hospital de Bost.
A expansão das instalações do hospital funcionou em parte como chamariz, atraindo mais casos, afirmou Vandormael. Ao contrário de outros hospitais públicos do país, pacientes e profissionais de saúde não necessitam pagar pelos medicamentos e alimentos que consomem. Além disso, o MSF conseguiu garantir o recebimento regular dos alimentos terapêuticos fornecidos pelo UNICEF para o tratamento da desnutrição.
- Nosso tratamento é melhor e o número de pacientes aumenta conforme eles tomam conhecimento disso - afirmou o Dr. Yar Mohammad Nizar Khan, chefe de Pediatria do Hospital de Bost.
Contudo, os números continuam preocupantes. O Dr. Mohammad Dawood, pediatra do Hospital de Bost, afirmou que ocorreram sete ou oito óbitos por desnutrição grave durante o mês de junho a agosto e cinco em setembro. Médicos de todo o país relataram taxas semelhantes.
Entretanto, representantes do UNICEF e o Ministro da Saúde Pública do Afeganistão negaram-se a classificar o problema de desnutrição infantil da cidade como situação de emergência. A situação é considerada emergencial, conforme definição internacional, quando mais de 10 por cento das crianças menores de 5 anos têm desnutrição aguda grave e as autoridades de saúde estimam que essa taxa esteja em mais 7% no Afeganistão.
- Cientificamente falando, o aumento do número de crianças contabilizado pelos hospitais não é uma evidência absoluta de que a situação esteja piorando. Isso é um bom sinal, mostra que o programa está se expandindo, que mais pacientes estão realizando exames e as doenças estão sendo descobertas e tratadas - afirmou Moazzem Hossain, chefe de nutrição do UNICEF na região.
Outro problema são as estatísticas pouco confiáveis. Em janeiro de 2012, por exemplo, o UNICEF e a Organização de Estatísticas Centrais do governo afegão apresentaram uma pesquisa que abrangeu mais de 13 mil lares e demonstrou que algumas províncias alcançaram ou ultrapassaram os níveis emergenciais, com mais de 10% das crianças desnutridas.
A pesquisa causou alvoroço, embora o UNICEF e o Ministério da Saúde não a tenham reconhecido, alegando que foi baseada em estudos falhos.
Diferentemente de crises de desnutrição em outras regiões do mundo, essa não foi associada à deficiência de um tipo específico de alimento ou problemas com a colheita. Além disso, os pais não chegam ao hospital desnutridos, mesmo quando seus filhos têm a doença.
Os médicos envolvidos no tratamento das vítimas oferecem muitas explicações para o que vem ocorrendo.
- Existem minas nos campos, e eles não têm acesso à colheita. Além disso, eles não conseguem ajuda nas clínicas locais, por isso chegam aqui em um estágio muito avançado, em um estado muito crítico - afirmou Dawood, na província de Helmand.
Khan, que trabalha com Dawood, põe a culpa em outro problema:
- A causa principal da desnutrição no Afeganistão é a falta de amamentação. Eles veem fotos bonitas de caixas de leite e acham que esse leite é melhor - afirmou.
A pobreza é outro fator. No Afeganistão, ela é definida como a renda total que permite fornecer 2,1 mil calorias ao dia a cada membro da família e aproximadamente 36% dos afegãos não atingem esse limite, de acordo com o Ministério da Saúde.
No Hospital Infantil Indira Gandhi aparecem mais de cem casos ao mês de desnutrição aguda grave, incluindo de cinco a dez óbitos, e esses casos duplicaram a partir de 2012, afirmou o Dr. Aqa Mohammad Shirzad, encarregado dos Programas de Combate à Desnutrição Pediátrica do hospital.
Cada um dos 17 leitos do hospital para pacientes com desnutrição grave é utilizado por pelo menos dois pacientes e há leitos com três. Na unidade de terapia intensiva dessa ala está uma incubadora que não funciona, uma bomba de sucção e cilindros de oxigênio, para as máscaras respiratórias, escoradas sem suportes ou conexões apropriadas.
Um menino de 5 anos, que pesa menos de 9 quilos, foi tratado recentemente sobre um assento porque a via de infusão não chegava até a cama. Duas janelas próximas não tinham vidro.
Esse é o principal hospital pediátrico do país, para o qual o pai de Fátima foi aconselhado a levar a filha para ser operada do coração. Ela não foi enviada a tempo.
Situação emergencial
Hospitais afegãos registram aumento nos casos de desnutrição entre crianças
Incidência aumentou 50% no país em comparação a 2012, de acordo com os números fornecidos pela ONU
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