Muitos acreditam que a brutalidade e a violência sejam tão antigas quanto a própria humanidade; entretanto, o cuidado com os doentes também parece ser.
Com base nisso, alguns arqueólogos passaram a sugerir um olhar mais próximo e sistemático sobre como os povos pré-históricos - que talvez tenham deixado apenas os próprios ossos - tratavam doenças, ferimentos e deficiências físicas: chamemos isso de arqueologia dos tratamentos médicos.
O caso que levou Lorna Tilley e Marc Oxenham, da Universidade Nacional Australiana, em Camberra, a essa conclusão foi a descoberta dos restos mortais de um jovem profundamente doente que viveu há 4 mil anos no atual norte do Vietnã e foi enterrado, como muitos de sua cultura, em um local conhecido como Man Bac. Quase todos os esqueletos encontrados no local, ao sul de Hanói e a cerca de 24 quilômetros da costa, estavam dispostos em linha reta.
O Túmulo 9 - como é conhecido tanto o local do enterro quanto a pessoa ali enterrada - continha restos mortais dispostos em posição fetal. A razão ficou clara em 2007, quando a estudante de pós-graduação em arqueologia, Lorna Tilley, e o professor Oxenham escavaram e examinaram o esqueleto. As vértebras fundidas, os ossos fracos e outras evidências sugeriam que o corpo encontrado no Túmulo 9 foi enterrado da mesma forma que viveu, encurvado e aleijado pela doença.
Os dois chegaram à conclusão de que o jovem ficou paralisado da cintura para baixo antes da adolescência, como resultado de uma doença congênita conhecida como síndrome de Klippel-Feil. Ele provavelmente não podia mexer os braços, se alimentar, ou se limpar, mas viveu por aproximadamente 10 anos depois da paralisia.
Os pesquisadores concluíram que, mesmo sem dominarem o uso do metal e vivendo exclusivamente da pesca, da caça e de porcos mal domesticados, as pessoas que viviam a seu redor se ocupavam de cuidar de todas as suas necessidades.
- Há uma experiência emocional durante a escavação de qualquer resto mortal humano, um sentimento de reverência - afirmou Tilley, além da responsabilidade de "contar a história com o máximo de precisão e veracidade possível".
Ainda que envolvam exemplos menos extremos de doença e deficiência, esse e outros casos similares levaram Tilley e Oxenham a se indagarem quais as dimensões dessa história e o que o cuidado com doentes e feridos diz sobre determinadas culturas.
Os arqueólogos descreveram a extensão das deficiências do corpo encontrado no Túmulo 9 em um artigo publicado pela revista Anthropological Science, em 2009. Dois anos depois, ambos retomaram o caso para abordar a questão do tratamento médico dedicado àquela pessoa. "Portanto, prover e receber tratamentos médicos pode refletir alguns dos aspectos mais fundamentais de uma cultura", escreveram os arqueólogos no The International Journal of Paleopathology.
Além disso, no começo do ano Tilley propôs o conceito de "bioarqueologia do tratamento médico", um campo de estudo "com potencial para fornecer pontos de vista importantes - e possivelmente exclusivos - sobre como eram as vidas das pessoas que estudamos". Segundo a arqueóloga, o caso do Túmulo 9 indica tolerância e cooperação em sua cultura, mas também sugere que ele possuía um senso de autovalorização e uma grande vontade de viver. Para Tilley, seria impossível que aquele jovem continuasse vivo sem isso.
- Obviamente não sou a primeira arqueóloga a encontrar evidências de pessoas que precisavam de ajuda para sobreviver na idade da pedra e em outras culturas primitivas - afirmou. E seu método também "não é uma invenção", pois é baseado em uma série de trabalhos anteriores.
Tilley afirmou que conhece "ao menos 30 casos arqueológicos nos quais a doença ou a patologia era tão severa que aquelas pessoas precisariam de cuidados médicos para continuarem vivendo". Além disso, a arqueóloga afirmou que existem outros casos desse tipo que precisam ser descritos. - Tenho total confiança de que existem inúmeros estudos de caso envolvendo cuidado médico ou acomodação de pacientes.
Esses casos incluem ao menos um neandertal, Shanidar 1, encontrado num sítio arqueológico de 45.000 anos no Iraque e morto aos 50 anos de idade com um braço amputado, perda de visão em um olho e outros ferimentos. Há também o caso do menino de Windover, encontrado em um sítio arqueológico de 7,5 mil anos, na Flórida, e que viveu até os 15 anos de idade com uma severa malformação congênita da coluna vertebral conhecida como espinha bífida. D.N. Dickel e G.H. Doran, da Universidade do Estado da Flórida, escreveram o estudo original sobre esse caso em 1989, concluindo que, ao contrário do senso comum a respeito dos povos pré-históricos, "sob determinadas circunstâncias, a vida há 7,5 mil anos também incluía a capacidade e o desejo de ajudar e sustentar pessoas com deficiências físicas e doenças crônicas".
Em outro caso famoso descoberto em um sítio arqueológico de 10 mil anos escavado na Itália nos anos 1980, o esqueleto do adolescente Romito 2 mostrava uma forma aguda de nanismo que deixou o garoto com braços muito curtos. Seu povo era um grupo nômade de caçadores-coletores e, ainda que jovem não precisasse de cuidado constante, o grupo precisava aceitar que ele não poderia correr na mesma velocidade, nem participar das caçadas da mesma forma que os demais.
Tilley graduou-se em psicologia em 1982 e trabalhou na área médica, estudando resultados de tratamentos médicos antes de se interessar pela arqueologia. Segundo ela, a experiência influenciou seu interesse pelos tratamentos médicos da antiguidade. Nos estudos publicados com Oxenham e na dissertação que está escrevendo, Tilley sugere um método padrão para o estudo de antigos restos mortais de pessoas doentes ou deficientes, visando a compreensão de suas sociedades.
A arqueóloga propõe uma série de etapas de investigação, primeiro estabelecendo o que havia de errado com a pessoa, para descrever, em seguida, o impacto da doença ou da deficiência sobre o estilo de vida daquela cultura, e examinando, por fim, o nível de cuidado necessário. Uma pessoa paralisada, por exemplo, precisaria de um "apoio direto", similar a cuidados de enfermaria, ao passo que alguém como Romito 2 precisaria de "acomodações", ou seja, da tolerância de suas limitações e alguma assistência.
Debra L. Martin, professora associada de antropologia biológica na Universidade de Nevada em Las Vegas, convidou Tilley para escrever o artigo "The Bioarchaeology of Care" para um relatório especial sobre as novas direções da bioarqueologia, publicado este ano pela Archaeological Record, a revista da Sociedade Americana de Arqueologia.
Martin afirmou em um e-mail que a proposta de Tilley "é uma abordagem muito bem integrada" que utiliza todas as evidências disponíveis. Segundo ela, "a inovadora abordagem de Lorna nos ajuda a ir além dos ossos de determinados indivíduos, levando-nos a refletir sobre a comunidade como um todo".
O quarto estágio do método proposto por Tilley consiste em criar uma base de interpretação a partir dos fatos reunidos. Chegar a conclusões sobre como as pessoas viviam com base em evidências concretas retiradas de restos mortais humanos é o principal objetivo da bioarqueologia, um termo criado nos anos 1970 por Jane E. Buikstra, da Universidade do Estado de Arizona, para descrever o uso de métodos da antropologia física - que se concentra nos ossos - e da arqueologia - que se concentra na cultura e nos artefatos - para "povoar o passado", conforme descreve o ato de colocar pessoas no contexto cultural do passado.
Buikstra é diretora do Centro de Pesquisa em Bioarqueologia e atualmente se concentra na coevolução dos seres humanos e suas doenças. Segundo ela, "de tempos em tempos, as pessoas tentam atribuir carinho e cuidado" aos seres humanos da antiguidade. Entretanto, para ela "é sempre difícil entrar na mente dos humanos do passado". Os métodos de Tilley para avaliar como e quando chegar a esse tipo de conclusão baseariam esse processo nos padrões atualmente utilizados para avaliar os cuidados médicos necessários para pessoas com severas limitações físicas.
The New York Times
No Vietnã, ossos de 4 mil anos atrás contam história de compaixão
Através dos restos mortais, arqueólogos descobriram que jovem com paralisia sobreviveu por aproximadamente uma década, provavelmente graças aos cuidados de pessoas próximas a ele
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