Kilis, Turquia - Era meio-dia e o céu estava nublado, quando um homem turco estacionou seu caminhão em frente a uma casa de fazenda da cidade. A caçamba tinha fertilizante suficiente para explodir um quarteirão.
- O que me pedem, eu faço - afirmou o homem, que não revelou o nome, mas falou tranquilamente sobre sua disposição em ajudar os rebeldes da Síria. - Nunca digo não.
Em seguida, tirou um recibo do bolso mostrando quanto dinheiro tinha gastado com a carga: cerca de 2.500 dólares que seriam reembolsados pelos tesoureiros sírios.
O caminhão continha duas toneladas de fertilizantes à base de nitrato - o mesmo composto químico e praticamente a mesma quantidade utilizada por Timothy McVeigh para explodir o edifício federal em Oklahoma City, em 1995 - que havia trazido de uma atacadista de produtos agropecuários na cidade de Antakya, duas horas a oeste dali.
Outro turco, Ahmed Helo, ajudava a descarregar o fertilizante, saco após saco, até que a sala da frente da casa estivesse cheia de fertilizantes e com um único barril de enxofre. O plano era esperar até o anoitecer, levar tudo para a Síria e entrega o carregamento para que os guerrilheiros fizessem bombas.
Helo soltou um palavrão para descrever o presidente da Síria, Bashar Assad, e então disse: - Queremos nos ver livres dele.
- Estou ajudando desde o começo da revolução - afirmou Helo, um ex-combatente do exército turco que tem parentes em Aleppo, a maior cidade da Síria, e que viaja frequentemente para o interior do país com o objetivo de ajudar os rebeldes a construírem bombas. Às vezes ele se junta à frente de batalha.
Nada do que os homens estão fazendo parece ser segredo e eles não se esforçam para esconder suas atividades. Um veículo do exército turco passou pelos dois e a fronteira oficial ficava a poucas centenas de metros dali.
- Não é segredo - afirmou o homem sírio a cargo de pagar pelos fertilizantes, um comandante chamado Abu Mohammed. - Não é nada proibido. É só fertilizante.
Já se passaram 20 meses desde o início do conflito na Síria e, atualmente, a guerra civil define o ritmo, as conversas e o comércio na região de fronteira. Os sírios estão tentando mudar de vida e os turcos tentam continuar vivendo, mas ambos lutam para coexistir. Aparentemente, todos querem participar da ação e esperam que tudo acabe bem.
Até o momento com pouca unidade política e militar, a revolução não definiu uma estratégia clara de como derrubar o governo, nem uma visão do que deve acontecer quando o conflito terminar, deixando todos ao mesmo tempo esperançosos e temerosos em relação à causa.
- Não dá pra dizer exatamente o que queremos - afirmou Abu Mohammed. - Só queremos que esse regime acabe.
Abu Mohammed, assim como muitos dos envolvidos na ação, foi contraditório em seu discurso. Descreveu a si mesmo como um simples pintor de paredes na Síria antes da revolução, mas disse que era um dos muitos estrangeiros a ir ao Iraque para lutar contra os "infiéis americanos", afirmando logo em seguida que não era "muito ligado em religião".
Sem a orientação firme da comunidade internacional, em especial dos Estados Unidos, cuja influência esses homens ao mesmo tempo desejam e rejeitam, quase todos concordam que a autoridade dos vizinhos extremistas tem crescido nos últimos meses.
- Graças a Deus que está crescendo - afirmou Abu Mohammed. - O importante é que alguém nos ajude, não é?
Agora, a religião está se tornando uma força mais contundente na vida dos sírios. Muitos homens que eram seculares, que talvez até rezassem, mas cujas vidas se concentravam em questões mais prosaicas - como alimentar a família e passar tempo com os amigos - estão deixando a barba crescer, banindo o álcool e, em algumas comunidades controladas pelos rebeldes, estabelecendo tribunais da sharia, a lei islâmica.
- Algumas pessoas costumavam beber, mas agora pararam - afirmou Abu Mohammad. - Elas não querem mais pecar. O comprometimento com a religião está crescendo. Vendo tantas mortes, é natural que fiquemos mais religiosos.
Saiid al-Assi, que deixou a barba crescer e agora se dedica à oração, estava recentemente em um hotel na cidade de Antakya. Al-Assi era fazendeiro, criava ovelhas e plantava amêndoas, e afirmou que muitos sírios seguiram seu exemplo.
- Boa parte dos homens está se tornando mais religiosa - afirmou. - Por quê? Porque foram abandonados pelo mundo todo.
E acrescentou: - A Al-Qaeda está nos ajudando, mas os europeus não estão.
Na noite anterior à eleição presidencial nos Estados Unidos, um comandante rebelde que transita entre a Síria e a Turquia e que informou apenas o primeiro nome, Maysara, sentou-se em um café em Antakya para beber chá e fumar cigarros enrolados a mão. - Costumava beber, mas não faço mais isso - afirmou. - Porque posso morrer a qualquer momento.
Como muitos outros, Maysara era agricultor antes da guerra e não se preocupava muito com a religião. Mas a guerra continuou e as crueldades passaram a deixar as pessoas mais sensíveis, criando um futuro incerto para qualquer tipo de sociedade que possa surgir após o fim da guerra.
O combatente concorda com a justiça dos tribunais da sharia que surgiram nas pequenas comunidades comandadas pelos rebeldes. Explicou os recentes sequestros de curdos pelos combatentes aliados ao Exército Livre da Síria, após conflitos entre os dois grupos, dizendo: - Era uma mensagem de que poderíamos matá-los quando bem entendêssemos.
E a respeito dos recentes assassinatos a sangue frio de soldados do governo, registrados em um pungente vídeo entregue para a ONU como possível prova de crimes de guerra, Maysara disse o seguinte: - Em minha opinião, o único erro foi o de terem filmado a ação.
No fim da semana, depois de receberem notícias de que as eleições americanas levariam a uma nova onda de iniciativas internacionais para convencer Assad a deixar a Síria em troca da garantia de sua segurança, o rebelde Abdul Zaki estava no mesmo café. Naquela manhã, Assad havia dado uma entrevista para um canal de televisão russo no qual jurou "viver e morrer na Síria".
Quando os comentários de Assad inundaram o Twitter, Zaki retorquiu com uma bravata típica de um jovem guerreiro.
- É claro que ele vai morrer na Síria - afirmou. - Nós estamos aqui para garantir que isso aconteça.
The New York Times
Na fronteira da Síria, vidas são definidas pela guerra
Civis sírios e turcos lutam para coexistir em uma região afetada por conflitos
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