
A BR-386, que liga o norte do estado à Região Metropolitana, vive um momento de reconstrução e retomada. A chamada Estrada da Produção sofreu diversos danos estruturais durante a enchente, em meio a um período de obras importantes. Quase 11 meses depois da cheia, são poucos os resquícios deixados pela tragédia, e os trabalhos de melhorias na estrada voltam a ter um ritmo acelerado.
Zero Hora percorreu 372 quilômetros da rodovia, de Canoas a Boa Vista das Missões, entre os dias 19 e 21 de março para conferir as atuais condições da estrada e o impacto para motoristas e as comunidades que dependem dela.
A estrada possui 266 quilômetros administrados pela CCR ViaSul, com quatro praças de pedágio. Nesse bloco, segundo a empresa, passam 16,5 mil veículos por dia. Outros 106 quilômetros são de responsabilidade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit).
Atualmente, a duplicação dos trechos de pista simples é a grande obra aguardada pela população. Boa parte dos trabalhos sofreu atrasos, alguns iniciaram recentemente e outros ainda estão pendentes, com previsão de início para os próximos anos.
"Atualmente, temos mais de 2 mil trabalhadores atuando em todos os trechos em obras na BR-386, desde Tio Hugo até Estrela", diz a CCR ViaSul, em nota. A empresa ainda comenta que "o cronograma prévio de serviços foi prejudicado devido à enchente histórica que atingiu o Rio Grande do Sul em maio do ano passado".
Obras em andamento
Os trabalhos de duplicação estão em andamento desde 2021. O primeiro trecho a ser contemplado foi entre Lajeado e Marques de Souza, em um trecho de 20 quilômetros. Inicialmente previstos para o início de 2023, as obras seguem inacabadas.
Moradores, autoridades e profissionais que trabalham no ramo da logística reconhecem que as obras trarão melhorias no deslocamento e enxergam avanços em relação ao período da enchente, que afetou a circulação principalmente no Vale do Taquari, atravessado pela BR-386.
— Com a enchente de maio de 2024, a situação se agravou, principalmente na região de Pouso Novo. Atualmente, o maior impacto é na ponte do Rio Taquari, especialmente a que liga o Interior à Capital. Porém, em breve deve normalizar a situação — afirma Alexandre Leomar, diretor jurídico da Leomar Transportes.
No trecho de Lajeado, são 14 quilômetros já liberados com a duplicação, restando outros seis para concluir essa etapa. A atual previsão da concessionária é que isso ocorra ainda no primeiro semestre deste ano.
Entre os motivos apontados para o adiamento estão, a demora para obter a licença ambiental; a saída da antiga empresa responsável pelo serviço, que não vinha obtendo os resultados esperados pela concessionária; e as enchentes de 2023 e 2024. A antiga empresa havia concluído 11 quilômetros até março do ano passado. Desde então, apenas outros três quilômetros foram duplicados.
Na estrada há cinco décadas, Eli Vieira, 70 anos, vê o trecho em obras como o principal desafio em seu deslocamento. É comum que ele vá até o Paraná transportando grãos de soja e outros produtos.
— Má sinalização, muito buraco na pista, solavancos, essas coisas. Tem que ter muito cuidado.

Enquanto as obras não são concluídas, empresas temem pelo impacto no transporte de cargas e no trabalho dos motoristas.
— O transporte parado é, por si só, prejuízo. A ineficiência no fluxo de caminhões pode comprometer o cumprimento dos prazos de entrega, afetando toda a cadeia produtiva do Estado. Além disso, o tempo parado, seja 30 minutos ou uma hora, pode prejudicar a jornada dos motoristas e resultar em transtornos operacionais, o que tem reflexos diretos na economia local — diz o superintendente Institucional do Sindicato das Empresas de Transportes de Cargas Logísticas no Estado do Rio Grande do Sul (Setcergs), Eduardo Richter.
Em comunicado, a CCR ViaSul reconhece "as ações causam transtornos aos envolvidos", mas aponta "que são atividades necessárias que objetivam melhorias das condições viárias proporcionando mais segurança e fluidez". Já sobre as reclamações acerca dos avisos na pista, a empresa diz que "é implantada uma sinalização especial e reforçada, e, quando necessário, dotada de iluminação específica para canteiros de obras".
Obra de viaduto e alagamentos
Com a duplicação, o projeto prevê a construção de passarelas e viadutos em alguns pontos. Uma dessas obras vem causando problemas em Lajeado, conforme relatos de moradores. Um viaduto erguido próximo à RS-130 estaria causando alagamentos na rodovia e no entorno toda vez que chove.
Uma mudança na tubulação feita para construir a estrutura do viaduto teria alterado o fluxo de escoamento da água, que se acumula facilmente na pista quando chove, atingindo também estabelecimentos e residências próximas.
O mecânico Jair Borges, 53 anos, vive nos fundos da BR. Ao lado da casa onde mora, há um córrego que passa por baixo da rodovia. Desde o início das obras, segundo ele, a vazão da água aumentou e, sempre que chove mais forte, o curso transborda. Em maio do ano passado, em meio às enxurradas que culminaram na enchente, sua residência ficou completamente alagada, ele conta, atribuindo o problema aos trabalhos na rodovia.
— Isso foi devido à obra. Porque antes não dava isso, era mais de 15, 20 anos. Com aquela chuva, botaram a tubulação ali, que não deu vazão, e deu o que deu. Alagou todas as casas. Teve casa aqui que entrou mais de um metro de água — conta Jair.

O viaduto, que também deveria ter ficado pronto junto às duplicações, obriga os motoristas que trafegam no sentido sul a desviarem pela via lateral, onde fica a oficina de Ederson Lunges. Ele se diz prejudicado pelo andamento da obra.
— O acesso a nossa empresa está restrito por causa do não andamento da obra. O fluxo de veículos é muito intenso. A via lateral virou a via principal que liga o Interior a Porto Alegre, que hoje passa na nossa frente — reclama.
Questionada sobre os relatos, a concessionária afirma que "segue com as obras de implantação da nova passagem superior no km 345 da BR-386, em Lajeado. Atualmente, as equipes atuam na execução do aterro e atividades para promover a uniformidade da estrutura. Entre essas ações estão a recuperação do canal de drenagem e adequação da nova drenagem".

Desafios em Soledade
Outros dois projetos de duplicação da 386 estão em andamento, ambos na região de Soledade, sendo um deles ligando o município a Fontoura Xavier e outro ligando a Tio Hugo. Por conta disso, o trecho da rodovia que compreende a cidade de 31 mil habitantes é o que mais concentra máquinas, canteiros e intervenções.
O segmento Fontoura Xavier/Soledade começou em outubro de 2023 e está 60% concluído. Uma pista nova de duas faixas está sendo construída ao lado da pista simples atual, compreendendo 25,6 quilômetros de estrada. A previsão de conclusão é para o segundo semestre deste ano.
Já a etapa de Tio Hugo, com 30,5 quilômetros, teve início em julho do ano passado e está com apenas 15% das obras feitas. A entrega é estimada para o primeiro semestre de 2026. Até o momento, nenhum ponto desses dois trechos foi liberado.
O andamento das obras tem feito desta parte da estrada uma das mais desafiadoras aos motoristas. Com maquinários, pedras e outros sedimentos nas margens da rodovia, condutores precisam ter atenção e reduzir a velocidade para evitar acidentes. O problema, no entanto, é ainda maior quando há o deslocamento dessas máquinas ou outros trabalhos de intervenção, como recapeamento asfáltico, que causa bloqueios momentâneos e exige paciência dos condutores.
Segundo o comerciante Alduíno Colombo, 72 anos, as paradas se tornaram frequentes nos últimos três meses.
— Você anda sete, oito quilômetros e, de repente, do nada, para tudo. Fica 40 minutos, uma hora parado. Tem dias que daqui a Passo Fundo, que são 100 quilômetros, são três horas de viagem. Normalmente, leva 40 minutos — conta.
Durante a tarde de quarta-feira (19), a reportagem passou por um trecho que operava no sistema "pare e siga", por conta de obras, intercalando os sentidos e formando uma fila de veículos por cerca de dois quilômetros. O representante comercial Adolar Salim decidiu sair do carro com seu filho e um colega de trabalho. Habituado a pegar estrada, ele diz já estar se acostumando com os bloqueios. Segundo ele, uma rota alternativa seria ainda mais demorada.
— Todo mês, fazemos no mínimo duas viagens para cá. Cada viagem dá uma hora, entre três e quatro paradas. A gente já se acostumou, tem que ter paciência. Se deixar o carro ligado é pior — fala.
Sobre os bloqueios, a CCR ViaSul pontua que "todas as intervenções são informadas previamente junto aos públicos relacionados (prefeituras, comunidades lindeiras e imprensa) por meio dos canais de comunicação oficiais da empresa, visando informar as pessoas impactadas pelas obras".
Outros dois planos de duplicação estão previstos e ainda não iniciaram: entre Fontoura Xavier e Marques de Souza (54,9 quilômetros), previsto para começar no ano que vem, e o trecho entre Carazinho e Tio Hugo (34,6 quilômetros) com previsão de início apenas para 2029.

Trecho sem concessão
Ao fim do trecho sob concessão da CCR ViaSul em Carazinho, a BR-386 segue por mais 106 quilômetros até chegar em Boa Vista das Missões. Nessa parte, a rodovia é administrada pelo Dnit e não possui pedágios. Pelo traçado original, ela seguiria até Iraí, na divisa com Santa Catarina, passando por municípios como Seberi e Frederico Westphalen. No entanto, a partir desse ponto, ela se funde com a BR-158.
Em toda extensão, a rodovia é de pista simples, com exceção de trechos de subida, que possuem uma segunda faixa para ultrapassagem, além de possuir acostamento contínuo. Ainda assim, trata-se de uma estrada muito movimentada, com uma grande quantidade de caminhões e máquinas agrícolas, por ser uma região rodeada por propriedades rurais.
Devido ao fluxo acentuado, prefeitos da região pressionam autoridades para duplicar a rodovia, bem como a BR-158, para que haja mais espaço e tráfego entre os veículos.
— Estamos nos articulando para a próxima ida a Brasília tratar direto com o ministro Renan Filho (dos Transportes) sobre projeto de duplicação de Carazinho a Iraí. Na verdade, esta rodovia é uma das mais movimentadas do Estado, justamente pelo transporte da produção, grãos, animais, leite e máquinas agrícolas, que vão especialmente para o Paraná e Mato Grosso, e pelas indústrias e empresas que se instalaram aqui na região — afirma Adilson Balestrin, prefeito de Seberi e presidente da Associação dos Municípios da Zona da Produção (Amzop).
Um projeto do Dnit já está em andamento para ampliar a pista entre o quilômetro 129, em Barra Funda, e o quilômetro 180, em Carazinho. Conforme o departamento, neste momento, o projeto se encontra na fase de levantamentos e estudos que vão embasar o seu dimensionamento. Não há previsão para o projeto ser concluído. É certo que as obras não iniciarão neste ano.
O órgão já sinalizou que pretende realizar um novo projeto no trecho restante da 386, com melhorias entre Barra Funda e Boa Vista das Missões. No entanto, o estudo de viabilidade não previu a duplicação.

Problemas na via
Questões estruturais ainda são pontos de atenção no trecho não concedido. As condições do asfalto variam ao longo do percurso. Em Carazinho e Sarandi, por exemplo, a pavimentação é boa, sem apresentar irregularidades significativas. Em outros trechos, principalmente após passar o perímetro urbano de Sarandi, a qualidade piora significativamente.
Um dos pontos que mais chama a atenção é no quilômetro 101, em São José das Missões, em que uma grande deformação obriga os motoristas a desviarem para a pista contrária em meio a uma curva. Para os caminhoneiros, o risco de acidente se torna ainda maior.
— A gente tem que desviar, às vezes fazer uma manobra perigosa. Tem muito risco de acidente — relata Oeliton Thais, que utiliza frequentemente esse trecho para transportar cargas.
O Dnit informou, em nota, que "mantém ativos contratos de manutenção e conservação na rodovia que permitem garantir boas condições de trafegabilidade. Nos últimos anos foram entregues mais de 50 quilômetros de restauração rodoviária, o que representa 50% do segmento".