Esta reportagem foi produzida por Daniel Costa de Oliveira, aluno de Jornalismo na UFPel e um dos cinco vencedores da edição 2024 do Primeira Pauta RBS
Em menos de seis meses, Bruna* vai completar 18 anos. A tão esperada data chega em abril de 2025. Ela já sente a ansiedade e as incertezas concomitantes à maioridade. Bruna faz parte de uma pequena parcela da população: crianças e jovens que vivem em unidades de acolhimento em Porto Alegre. Mas logo, terá que deixar o local.
— O sentimento é de angústia, de insegurança, com certeza, porque eu prezo muito pelo meu espaço pessoal — projeta ela, que mora na Fundação Pão dos Pobres, na região central de Porto Alegre.
Bruna carrega no olhar uma mistura de medo e esperança. Dois sentimentos que marcam a transição de outros jovens como ela. Enquanto para muitos a maioridade é motivo de celebração, para quem vive nas unidades de acolhimento, isso representa o fim de uma fase protegida e o início de uma jornada solitária.
No Brasil, o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca) determina que o Estado tenha que amparar os jovens órfãos ou abandonados até que completem 18 anos. A partir dessa idade, eles precisam deixar os espaços e viver por conta própria.
— Quando uma criança dá entrada no sistema de acolhimento, já temos que pensar em como será a saída. Então, dos 0 aos 14 anos, essas crianças ficam um turno na escola e outro no Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV). Depois, começa o período de aprendizagem profissional, para prosperar em uma profissão — explica a promotora da Infância e Juventude do Ministério Público (MP-RS), Cinara Vianna Dutra Braga.
Um levantamento realizado pelo Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre aponta que aproximadamente 3,8 mil crianças e adolescentes vivem em casas de acolhimento no Rio Grande do Sul. Dessas, mais de 750 moram em uma das 50 unidades que, conforme a prefeitura, existem na Capital.
Em todo o Brasil, segundo dados do Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), o número de crianças e adolescentes em instituições de acolhimento é de 33,7 mil, sendo 5.058 jovens acima dos 16 anos. Desses, conforme o levantamento, 626 estão amparados no Rio Grande do Sul, o segundo Estado com o maior número de acolhidos nesta faixa etária.
Na contramão da expectativa de encontrar uma nova família, os últimos dois anos antes da maioridade também representam o menor índice de pretendentes à adoção. No Rio Grande do Sul, apenas oito famílias aceitariam acolher um jovem acima dos 16 anos, conforme dados de novembro do SNA.
— Daquelas famílias que estão aptas para adoção, a grande maioria busca uma criança com até seis anos de idade. Mas 95% das crianças e adolescentes aptas para adoção têm mais que essa idade — destaca a promotora.
O que vem pela frente
Enquanto vê o tempo avançar em direção aos seus 18 anos, Bruna aproveita as oportunidades ofertadas pela Fundação Pão dos Pobres e se prepara para a chegada da maioridade.
— Eu faço o curso de vendas no Pão dos Pobres, que é essencial para mim. Me ensina a lidar com as pessoas e vender qualquer tipo de coisa, o que me abre mais oportunidades — diz Bruna.
Fundada em 1895, o Pão dos Pobres Santo Antônio é uma das diversas entidades que auxiliam os jovens em vulnerabilidade social em Porto Alegre. Assim como Bruna, cerca de 160 crianças e adolescentes também têm a instituição, localizada na Cidade Baixa, como seu lar.
A Fundação também pensa na preparação das crianças e adolescentes para a vida adulta, através de serviços de fortalecimento de vínculo e de aprendizagem profissional para aqueles em vulnerabilidade social. Atualmente, a instituição atende mais de 1,8 mil jovens de até 24 anos.
— Além do acolhimento de crianças e adolescentes que tiveram seus direitos violados e, por uma decisão judicial, moram no Pão dos Pobres, também atuamos na prevenção com oferta de 14 cursos profissionalizantes para aqueles que estão ou não no acolhimento institucional — explica João Rocha, gerente socioeducativo da Fundação Pão dos Pobres.
Quem superou esses desafios, vira inspiração. Juliano Nascimento, 31 anos, é um destes exemplos. Ele transformou sua vida através da capacitação profissional ofertada em instituições da Capital. Após passar um período na Fundação de Atendimento Sócio-Educativo (Fase), foi no curso de Informática que ele encontrou uma oportunidade de mudar sua realidade.
— Depois da Fase, entrei no curso de manutenção de computadores. Foi muito importante, porque dentro de um curso de aprendizagem profissional tem uma grande equipe, com coordenação, serviço social, psicóloga. Muitas vezes estive desmotivado e essa rede de apoio me ajudou a não desistir e chegar onde estou hoje — relata.
Desde 2022, Juliano também é educador no mesmo curso onde foi aluno. Ele relata que sua história de vida faz com que ele tenha empatia para lidar com seus alunos, porque sentiu na pele as angústias e inseguranças que eles também sofreram.
— O público que eu atendo hoje é o público de onde vim, então eu tenho facilidade de trabalhar com esse público egresso da Fase e do sistema de acolhimento — destaca o educador.
A história de superação de Juliano inspira e motiva Bruna e tantos outros jovens que vivem em unidades de acolhimento e almejam um futuro promissor para sua vida.
— Essa história me motiva muito a realizar meu sonho de cursar medicina veterinária. O que mais escutamos são histórias de quem sai do acolhimento e vira morador de rua ou que volta para a criminalidade. Mas eu sei que dá para fazer a diferença, dá para quebrar esse padrão — deseja Bruna.
Um espaço para depois do acolhimento
Em 2009, uma resolução do Conselho Nacional de Assistência Social recomendou que os municípios ofereçam repúblicas para jovens egressos do serviço de acolhimento. A partir de março de 2025, a Fundação Pão dos Pobres deverá contar com uma dessas moradias provisórias. Serão 12 vagas disponíveis. Uma novidade que foi capaz de trazer tranquilidade para Bruna num momento de tantas incertezas.
— Eu tenho confiança (para conquistar a vaga na república). Eu sei o que eu quero para a minha vida e a república do Pão dos Pobres vai me dar segurança para me moldar até esse momento — garante a jovem.
O novo espaço será o segundo deste modelo disponibilizado em Porto Alegre. A outra república para jovens egressos do sistema de acolhimento é administrada pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) e possui 12 vagas. Sete estão preenchidas.
— Precisamos de qualidade, não de quantidade. Hoje nós temos uma república só, mas que é suficiente e isso se deve ao trabalho de preparo que acontece desde o abrigo — relata Mirela de Cintra, coordenadora de Proteção Social Especial da Fasc.
Na moradia, inaugurada em dezembro de 2023, é trabalhada a autonomia e a liberdade para que os jovens entre 18 e 23 anos possam encerrar o ciclo de preparação para a vida adulta. Apesar da resolução do conselho indicar que os espaços atendem entre os 18 e os 21 anos, a prefeitura da Capital aumentou essa janela.
— Desde a inauguração, tivemos 15 acolhidos e oito deles se organizaram e se emanciparam em cerca de 90 dias. Isso mostra que é um espaço de transição — explica o coordenador da república, Elias Nachtigall.
Entre os oito jovens acolhidos no espaço instalado na Zona Norte, está Camily Bilhan, 19 anos, que faz a transição para a sonhada independência. Ela caracteriza o ambiente da república como “tranquilo e aconchegante”. Fatores que dão “tranquilidade” para que ela busque os sonhos da vida adulta: ser fotógrafa e, posteriormente, advogada.
— Aqui tenho tranquilidade, faço tratamento para depressão e ansiedade. Tenho acompanhamento dos educadores e um assistente social que me dão suporte — conclui a jovem.
Bruna* - Nome fictício para preservar a identidade da jovem.
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