Assolado por três enchentes catastróficas em menos de um ano, o Rio Grande do Sul tem um longo caminho a percorrer no que diz respeito a prevenção e reação a desastres naturais. A cheia e os deslizamentos de terra vistos em maio mostram a urgência de se adotar medidas que sejam capazes de mitigar perdas humanas e materiais, e, para isso, referências internacionais podem facilitar o percurso.
A experiência global recomenda a criação de planos de contingência detalhados, com treinamento da população, de voluntários e realização periódica de simulações com alto grau de realismo.
Países que vivem sob risco constante apostam ainda na educação peventiva em escolas e em investimentos em tecnologias de alerta, medidas que podem e devem inspirar autoridades gaúchas na busca por respostas mais rápidas a fenômenos severos como os que devastaram o Estado nos últimos meses.
Veja a seguir, alguns desses exemplos.
Japão aposta em cultura preventiva e ação rápida
Fustigado por terremotos, tsunamis e erupções, o Japão se tornou referência global na elaboração de planos de contingência ao fomentar uma cultura nacional de prevenção e resposta a desastres. Isso inclui a criação de uma robusta estrutura oficial e processos contínuos de treinamento da população.
— A Lei Básica de Prevenção de Desastres obriga a elaboração de um Plano Básico para Prevenção de Desastres pelos governos municipais, provincianos e central. Também determina a área de atuação dos ministérios, que, por sua vez, elaboram seus respectivos planos básicos de prevenção — explica o coordenador de projetos da Agência de Cooperação Internacional do Japão (Jica), Kazuaki Komazawa.
O plano básico inclui as ações a serem tomadas pelo poder público desde emissão de alertas até evacuação, resposta emergencial e recuperação.
— Há planos elaborados para cada uma dessas etapas. Porém, o Plano de Continuidade das Atividades dos órgãos e instituições públicas é definido em separado. O restabelecimento dos serviços essenciais é realizado pelo agente público encarregado de sua gestão, como no fornecimento de água, ou pela empresa privada responsável, como no caso de energia elétrica e gás — complementa Komazawa.
Os japoneses também investem na educação dos moradores para tomarem decisões em curtíssimo prazo.
A realização de treinamentos é obrigatória. A educação em prevenção de desastres faz parte do currículo das escolas primárias e intermediárias.
KAZUAKI KOMAZAWA
Coordenador de projetos da Agência de Cooperação Internacional do Japão
— A realização de treinamentos é obrigatória. A educação em prevenção de desastres faz parte do currículo das escolas primárias e intermediárias, além de serem realizados simulados de evacuação nas escolas anualmente — conta o coordenador de projetos da Jica.
O sistema japonês é complementado pela ação de voluntários treinados para ações como remoção de solo ou de sedimento de dentro de casas afetadas. Eles se organizam por meio de um Conselho de Bem-Estar Social, existente em cada municipalidade, responsável por cadastrar e coordenar os voluntários.
"Prever o pior" está entre 10 lições da cheia na Alemanha
Em junho, uma inundação deixou pelo menos seis mortes e mobilizou o trabalho de 60 mil resgatistas no sul da Alemanha. O cenário é semelhante ao de outra enchente devastadora ocorrida três anos atrás, quando 189 alemães morreram.
Um estudo chamado Performance do Sistema de Alerta de Enchente, publicado no ano passado no site da União Europeia de Geociências, apurou que cerca de um terço da população em áreas suscetíveis a inundações repentinas não estava coberto por mecanismos de alerta. Desde então, foi instituído um modelo de aviso por envio de mensagem no celular.
Hoje, qualquer um com celular é automaticamente avisado se estiver em uma área de cheia.
BRUNO MERZ
Professor de Hidrologia do Centro de Pesquisa Alemão de Geociências de Potsdam
— Hoje, qualquer um com celular é automaticamente avisado se estiver em uma área de cheia. Mas outras medidas para reduzir riscos são mais difíceis: quase todas as casas danificadas ou destruídas na enchente de julho de 2021 foram reconstruídas no mesmo lugar vulnerável — afirma Bruno Merz, professor de Hidrologia do Centro de Pesquisa Alemão de Geociências de Potsdam.
Com base nesse tipo de aprendizado, um projeto integrado pelo Centro de Pesquisa Alemão de Geociências Potsdam elaborou uma lista de 10 recomendações fundamentais:
- A reconstrução dá oportunidade de reforçar a resiliência a desastres. No caso alemão, um exemplo foi desestimular sistemas de aquecimento a óleo, que ampliam os danos ambientais.
- Sistemas de modelagem de riscos de inundação devem passar a prever cenários até então considerados impossíveis. A pergunta a ser feita é "qual o pior cenário imaginável"?
- Criar mais espaço para os rios é fundamental. Isso não significa só afastar as zonas urbanas, mas criar terrenos de uso adaptável como parques e áreas de esporte, que funcionem como várzeas.
- Dar mais atenção às pontes nas avaliações sobre riscos de inundações, aplicando-se reforços para suportar o impacto da água e de destroços.
- Alertas antecipados em caso inundação precisam ser melhorados, com sistemas de funcionem mesmo em caso de colapso do sistema de energia.
- A função de sinalização de planos de contingência deve ser reforçada, com mapas de risco acessíveis ao público.
- O planejamento urbano e a construção civil devem ocorrer de forma integrada levando em conta todos os aspectos das mudanças climáticas.
- Reconstrução sustentável é melhor sucedida quando os envolvidos desenvolvem formas de cooperação e trabalho intermunicipais, com financiamento para isso.
- Preparação intensiva da Defesa Civil e gestão das águas tendo em vista chuvas e inundações de rara intensidade melhora a capacidade de administração dos eventos extremos.
- É preciso definir novos padrões e metas de proteção para infraestruturas críticas (fundamentais para o funcionamento da cidade).
Chile investe em alertas enviados para celulares
Um dos países sul-americanos mais sujeitos a desastres naturais, o Chile convive com o temor de terremotos, tsunamis, enxurradas e incêndios florestais como o que matou pelo menos 134 pessoas, devastou mais de 10 mil hectares (cerca de 14 mil campos de futebol) e destruiu 6,5 mil casas em fevereiro deste ano. Uma ferramenta foi considerada importante para evitar uma quantidade ainda maior de vítimas: o telefone celular.
Com a ajuda de um mecanismo implantado a partir de 2017, chamado Sistema de Alerta de Emergências (SAE), o Serviço Nacional de Prevenção e Resposta a Desastres (Senapred) emitiu avisos de evacuação direcionados especificamente às regiões de alto risco. Dessa forma, foi possível evacuar 99,4% da população de 21 mil pessoas localizada no perímetro mais afetado.
— Algo positivo que se pode aplicar em qualquer lugar, e que o Chile tomou como exemplo de países como o Japão, é o uso da tecnologia por meio de telefones celulares. Podem salvar vidas: permitem enviar informação de maneira direta, têm a capacidade de georreferenciar a localização das pessoas e permitem se conectar a redes sociais de apoio e ajuda. Qualquer tecnologia que dialogue com a telefonia celular pode ser de grande auxílio — avalia Daniela Ejsmentewicz Cáceres, diretora-executiva do Programa de Redução de Riscos e Desastres (Citrid) da Universidade do Chile.
Algo positivo que se pode aplicar em qualquer lugar, e que o Chile tomou como exemplo de países como o Japão, é o uso da tecnologia por meio de telefones celulares. Podem salvar vidas.
DANIELA EJSMENTEWICZ CÁCERES
Diretora-executiva do Programa de Redução de Riscos e Desastres (Citrid) da Universidade do Chile
O aviso se sobrepõe a outros aplicativos, não exige cadastramento prévio e emite som e vibração mesmo no modo silencioso.
— Para que o alerta massivo não seja afetado pelo congestionamento das redes celulares, se usam outros canais de radiofrequência para dar segurança ao sistema — conta a especialista em Gestão de Riscos da Universidade do Chile Carmen Paz Castro.
Moradores de algumas áreas, porém, se queixaram de falta de indicações mais claras sobre o que fazer ou por onde fugir do incêndio. Também houve relatos de que alguns usuários não receberam as mensagens. Para reduzir esse tipo de problema, o governo pediu uma investigação externa e faz envios periódicos de mensagens de teste. As cidades chilenas dispõem ainda de mapas de evacuação onde constam rotas de fuga de zonas de perigo, mas, segundo Daniela, também devem ser melhorados.
— Deveriam ser mais detalhados e considerar mais tipos de ameaças. São um avanço, mas ainda falta bastante — complementa a diretora do Citrid.
Uma legislação recente determinou parâmetros para a confecção de novos mapas de ameaças e riscos a fim de aprimorar o sistema de proteção chileno.
México capacita voluntários da comunidade
Às 7h19min do dia 19 de setembro de 1985, milhões de mexicanos acordaram ao sentir a terra sacudir vigorosamente. O abalo de 8,1 graus na escala Richter, seguido por outro tremor nas horas seguintes, matou mais de 10 mil pessoas, feriu pelo menos outras 30 mil e destruiu cerca de 400 edifícios, mas deixou em pé uma lição colocada em prática até hoje pela maioria dos países sujeitos a desastres naturais. O exemplo mexicano revelou a importância de treinar voluntários para prestar o primeiro atendimento em casos de desastre — quando a ajuda oficial por vezes pode demorar a chegar.
Um estudo publicado em 2004 no Journal of Contingencies and Crisis Management (Jornal de Contingências e Gestão de Crise) apontou que voluntários sem treinamento prévio foram responsáveis por resgatar cerca de 800 pessoas dos escombros em todo o país. A falta de noções básicas, porém, fez com que uma centena de socorristas improvisados morresse em meio a riscos secundários como desmoronamentos tardios. O episódio mostrou tanto a importância de contar com voluntários da própria comunidade para dar a primeira resposta a desastres quanto a necessidade de oferecer um preparo mínimo. Além disso, deu origem ao Sistema Nacional de Proteção Civil mexicano, criado por decreto no ano seguinte para organizar a resposta nacional a eventos extremos.
Depois disso, outros países passaram a apostar no treinamento de voluntários para agir como brigadistas em caso de necessidade. O Departamento de Bombeiros de Los Angeles (EUA) capacitou uma primeira turma de voluntários em 1986, sob a denominação de Community Emergency Response Team (Cert, ou Equipe Comunitária de Resposta a Emergência). O próprio México segue como referência nessa área, e hoje conta com equipes especializadas no resgate de animais de estimação, crianças ou idosos. Em 2017, em um novo terremoto também ocorrido em um dia 19 de setembro, os mexicanos puderam colocar em prática as lições aprendidas. O tremor de 7,1 graus deixou um número bem inferior de vítimas em comparação ao de 1985, com 369 mortos. O alerta soou menos de uma hora depois que milhões de pessoas haviam passado por um exercício nacional de prevenção voltado justamente à redução de danos em caso de catástrofe.