Uma peculiaridade da chuva torrencial registrada nos últimos dias no Rio Grande do Sul agrava a preocupação de autoridades e da população: o elevado potencial de destruição e de bloqueio de estradas e pontes, o que levou ao isolamento de comunidades inteiras e dificulta a circulação entre algumas das principais cidades gaúchas, como Santa Maria.
O estrago foi mais intenso e generalizado do que o testemunhado na grande enchente de setembro do ano passado, por exemplo, que assolou o Vale do Taquari e deixou mais de meia centena de vítimas. O alto grau de dano material visto agora se explica principalmente pela localização do epicentro das precipitações e pela característica "quase estacionária" do sistema meteorológico que atinge o Estado e supera a resistência das obras de engenharia. Há o risco de que os prejuízos se intensifiquem devido à continuidade do mau tempo na quinta-feira (2).
Em setembro, as chuvas mais fortes se concentraram nas cabeceiras dos rios das Antas e Taquari, no extremo Norte. A enxurrada desceu o vale inundando cidades inteiras ao longo do caminho, mas foi mais localizada. Agora, conforme o doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental Fernando Dornelles, o mau tempo se abate sobre uma ampla faixa central do Estado, onde há tanto uma grande concentração de córregos e rios, como o Jacuí, o Pardo e o Caí, quanto uma vasta malha de vias municipais, estaduais e federais e uma farta infraestrutura de pontes por se tratar de uma zona mais urbanizada.
— Tivemos grandes volumes de chuva em pouco tempo nessa região mais média do Rio Taquari e nas sub-bacias do Forqueta, do Guaporé, também do Jacuí. Isso fez com que bueiros e pontilhões fossem levados por conta da erosão provocada pela água nas suas bases. O número de estruturas danificadas foi maior porque se trata de uma região mais densamente ocupada — avalia Dornelles, que também é professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Santa Maria foi um dos municípios mais atingidos: a chuva comprometeu pelo menos 11 pontes e provocou danos em acessos fundamentais como a RS-287, a BR-158 e a BR-392. Além disso, problemas em adutoras chegaram a deixar 70% da cidade sem abastecimento de água. Outras localidades como Candelária e Caxias do Sul também apresentaram transtornos significativos de infraestrutura relacionados ao mau tempo, incluindo quedas de barreiras e deslizamentos.
Além de ter desaguado sobre uma zona mais sensível, a sucessão de tempestades trouxe volumes de chuva em níveis raramente vistos. Muitos locais registraram graus de precipitação três vezes superiores à média prevista para todo o mês de abril — em Segredo, no Vale do Rio Pardo, a medição indicou o acúmulo de 321 milímetros em apenas 24 horas, por exemplo.
O engenheiro ambiental e também professor do IPH da UFRGS Fernando Fan teme que os mais recentes prognósticos confirmem um agravamento ainda maior da situação.
— Com a continuação das chuvas no sentido da bacia do Rio Taquari, os modelos estão sugerindo a ocorrência de cheias ali da ordem do que ocorreu ano passado. Confirmadas as previsões, creio que estaríamos diante do maior desastre dos últimos anos — alerta Fan.
Chuva supera capacidade de projetos de engenharia
O turbilhão de água derramado nos últimos dias, insuflado pelas mudanças climáticas, amplia os transtornos à população porque supera a capacidade de resistência calculada para muitas obras viárias.
— Esses volumes extraordinários que estamos vendo superam o valor previsto em muitos projetos de engenharia, principalmente quando são mais antigos. Toda obra de engenharia é projetada para resistir a um determinado tempo de recorrência, ou seja, se espera que ela possa falhar uma vez a cada 50 anos, por exemplo. Os eventos que estamos testemunhando trazem chuvas acima dos valores que foram projetados para algumas dessas obras, e que terão de ser revistos quando as estruturas forem reconstruídas — sustenta o engenheiro ambiental e professor do IPH Fernando Fan.
O engenheiro recorda que uma ponte da RS-287 levada por uma enchente em 2010 em Agudo, por exemplo (mesma região afetada agora), foi reconstruída com base em requisitos mais rigorosos do que os anteriores.
— O que for destruído agora deverá ser refeito levando em conta esse cenário de fenômenos climáticos mais severos que estamos testemunhando — afirma o engenheiro ambiental.
A meteorologia também ajuda a entender a extensão dos estragos atuais. O professor do programa de pós-graduação em Meteorologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Vagner Anabor explica que o Estado foi afetado por um sistema meteorológico "quase estacionário", ou seja, que avança de forma muito lenta e, por isso, permanece por muito tempo lançando doses colossais de umidade vinda da Amazônia sobre os gaúchos.
— Esse sistema concentrou tempestades de forma persistente e continuada principalmente na região Central, que é uma zona de transição entre o Pampa e as escarpas do Planalto. As tempestades ficam morrendo e renascendo no mesmo lugar — afirma Anabor.
Isso ocorre, segundo o meteorologista, porque essa faixa do Rio Grande do Sul está sob um "gradiente térmico" acentuado, ou seja, em uma área com grande variação de temperatura em um intervalo de apenas algumas centenas de quilômetros. Há um ar mais frio ao sul do Estado e uma massa bem mais quente ao Norte. Esse sistema, que recebe umidade amazônica, permanece praticamente parado porque não está associado a algum fenômeno de maior escala que o "empurre" adiante.
A formação de um ciclone extratropical na latitude aproximada das Malvinas, entre a noite desta quarta (1°) e a quinta-feira (2), deverá intensificar mais uma vez a precipitação em solo gaúcho, voltando a aumentar os riscos. Depois disso, porém, deve organizar uma frente fria que deverá se deslocar e levar o mau tempo para longe.