Por Fernando Neubarth
Médico e escritor
Não sei teu nome, Menino. Sei que tu és de Maués, município amazonense distante 267km em linha reta da capital Manaus e que possui, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 62 mil habitantes.
Não sei teu nome, Menino. Maués, o nome da tua cidade, tem origem na língua Tupi e significa curioso, inteligente. Imagino-te também assim, um menino cheio de vida que, para não fugir da língua Tupi, vou chamar de Curumim.
Sei o nome das outras duas personagens dessa história, Curumim. Uma é a Beatriz, a outra é Sofia. O nome Beatriz tem origem no latim beatus, que significa “feliz, bem aventurado”, beatrix – “aquela que traz felicidade” ou que “faz os outros felizes”. Sofia tem origem no grego sophia e significa, literalmente, “sabedoria”.
Nomes são escolhidos, refletem sonhos, desejos, transcendências ou apenas ao acaso, por sonoridade ou qualquer outra razão. Ocupações na maioria das vezes são contingências, faz-se o que se pode, para ganhar a vida, para ter subsistência. Algumas profissões são opcionais, de mais difícil escolha e falo de dificuldade pela oportunidade rara, acesso limitado, custos sociais e econômicos. Poucos podem chegar a uma faculdade e formar-se em um curso superior. Beatriz e Sofia conseguiram, são médicas, duas jovens “doutoras”.
Não diria seus nomes, mas elas mesmo se apresentaram. Num diálogo em que se referem à ti, Curumim. Nas próprias mídias sociais, que foram sendo multiplicadas. Elas gravaram um vídeo no plantão onde foste levado para receber atendimento. Matérias de jornais relataram o caso, trazendo uma fama que elas talvez sintam agora com compreensível – pelo menos seria o esperado – amargura.
Estavas na sala ao lado, no hospital de tua cidade. Segundo o relato, atingido por um raio, outra coisa bem difícil de acontecer a alguém, mas muito mais sofrido do que se formar em Medicina. Dá para ouvir teus gritos por conta dos ferimentos. No diálogo em tom de zombaria, uma delas diz: “Eu comemorando que tá chovendo na cidade. Minutos depois criança atingida por raio”. E a outra: “Isso mesmo, parece que tá sendo exorcizada a criança”.
Estavas na sala ao lado, Curumim. Mas elas “precisavam” se manifestar ao mundo antes de acudir ao teu chamado. Uma das “maravilhas” de postar na internet é que é tudo muito rápido, instantâneo, tem a velocidade de um relâmpago. Nem é preciso pensar. Mas sempre serão escolhas, como tentar fazer os outros felizes ou viver com sabedoria.
Sabe, Curumim, temos visto tantas coisas pelas mídias sociais, disseminadas como raios, sem dó, nem piedade. Gracejos quando a outros falta o ar, palavras perversas, opiniões vazias, tentativas de fazer humor, enquanto outros curumins definham sem ter do que se alimentar, a não ser do mercúrio vazado do garimpo ilegal. Incêndios criminosos aniversariam décadas de impunidade. Encostas deslizam a cada chuva de verão, soterrando sonhos privados e públicas irregularidades.
Enquanto te escrevo, o noticiário atualiza os mortos no terremoto que atingiu parte da Síria e da Turquia e, entre tantas imagens, o afago carinhoso de um pai à mão da filha morta, corpo apenas adivinhado sob os escombros, e uma mulher que clama por afetos desaparecidos, numa língua que não entendo, mas é possível sentir a dor e o desespero.
Comove o que é mais do que um trabalho daquelas equipes que prestam socorro. Nem todos são profissionais, alguns agem pelo impulso, necessidade de ajudar, e até os cães farejadores parecem doar-se muito além do treinamento recebido.
De um profissional de saúde espera-se mais, Curumim. Espera-se alguns deveres específicos, de acordo com os princípios da ética e que detenha uma personalidade responsável e digna de confiança. Entre outros conceitos, há três que são fundamentais na caracterização dessa atitude moral desejável: empatia, compaixão e cuidado.
A atitude de compaixão empática é proposta como a adequada ao cuidado, exige o equilíbrio certo entre proximidade e profissionalismo e a forma correta de atenção a quem precisa. “Cuidado compassivo e empático” não descreve, no entanto, toda a atitude desejada, concentra-se mais nos aspectos morais. A fim de incluir também os aspectos cognitivos e práticos, o “cuidado compassivo e empático” deve ser combinado com uma atitude de responsabilidade, mais direcionada à tomada de decisões e resultados do que tão somente a uma atitude de cuidados per si.
É pena, Curumim – e mereces mais do que um pedido de desculpas de todos nós –, soube que estás bem agora, mas essa atitude profissional tão desejada em termos de “cuidado empático compassivo” e “responsabilidade” faltou nessa história. Que possa servir de advertência, de alerta, há muito a se repensar e corrigir nesse tipo de postura. Menos narcisismo midiático e mais seriedade, civilidade, digna e genuína humanidade. É preciso dar mais suporte às carreiras, mas também mais atenção às vocações.
Só para terminar essa mensagem, Curumim, o nome da tua cidade, Maués, também designa a nação indígena que habitava a região onde vives e pode significar também “papagaio falante ou inteligente”.Mas vais concordar comigo que nem todo papagaio falante é necessariamente inteligente. Alguns são apenas falantes.